Desde 2006, com o trabalho publicado por Michel Porter e Elizabeth Tiesberg(1), que os sistemas de saúde iniciaram, em diferentes partes do mundo, novos modelos de abordagem do mercado e do valor criado para os doentes e para a sociedade. É bom referir que os autores se basearam exclusivamente no mercado da saúde americano, onde encontraram grandes contradições entre a saúde das populações e os custos que o sistema de saúde, no seu todo, representava para o Estado e para os cidadãos. Resultados sofríveis, pouca equidade e custos cada vez mais elevados, resultantes de um mercado fortemente competitivo, muito atomizado por diferentes tipos de prestadores cada vez mais especializados e orientado pelo “fee-for-service” – o volume de atos prestados e o seu custo determinavam o valor a pagar.
Porter e Tiesberg introduziram uma nova visão sobre o mercado da saúde e a competição entre diferentes prestadores, centrada na ideia de medir o valor criado para o doente. Importa, metodologicamente, clarificar que os cuidados prestados a um doente podem ter efetivo valor acrescentado ou não, dependendo de múltiplos fatores e contingências: inadequação, insuficiência, excesso, incompetência, efeitos iatrogénicos, erros, encarniçamento terapêutico,etc. A OMS e a OCDE, em conjunto, estimam que cerca de 30% dos recursos gastos em cuidados de saúde são desperdiçados em complicações evitáveis, tratamentos desnecessários ou ineficiências organizacionais. Ou seja, prestar os cuidados certos, em dose e tempo adequado e para a pessoa certa, são elementos indispensáveis para o sucesso de uma prestação ou de um ciclo de intervenção clínica. Os autores concluíram que a competição entre prestadores e seguradoras se pautava sobretudo pela avaliação do valor dos atos em si mesmos, atribuindo a mais atos, mais sofisticação, mais prestígio e mais reconhecimento, mais valor. Nada de mais errado, porque ficava por evidenciar o essencial: o doente ficou curado ou viu a sua doença controlada e a sua qualidade de vida melhorada? A luta dos prestadores por novos doentes e a bateria de exames e intervenções seduzia os competidores mas não garantia necessariamente, bem pelo contrário, qualidade e bons resultados com custos controlados. Tratava-se, segundo Porter, de uma ”competição disfuncional”. Um dos elementos que mais influenciava estes maus resultados era a forma avulsa como os cuidados eram prestados, cada vez mais autónomos e especializados e sem perspetivar uma visão integrada do doente e do seus estado global de saúde.
Porter propôs, então, um novo desenho para os sistemas de saúde, não baseado no valor dos atos clínicos, antes no valor acrescentado para a saúde dos doentes, balanceado com os custos dos recursos envolvidos. Para este novo paradigma é imprescindível um conjunto de condições também inovadoras:
- As condições clinicas do doente devem ser sempre consideradas nas suas múltiplas dimensões e patologias associadas, com vista ao diagnóstico, tratamento e reabilitação;
- É crucial avaliar os resultados obtidos para cada doente que resultam de um ciclo integrado de prestação, bem como os custos envolvidos;
- Os modelos de pagamento dos cuidados devem estar alinhados com a forma integrada de observar e avaliar o doente, através de um preço compreensivo adequado ao processo e aos resultados obtidos e condicionado, naturalmente, pelas condições clinicas preexistentes do doente. Este ajustamento pelo risco é fundamental para manter equidade na avaliação do valor criado;
- As tecnologias de informação e comunicação são esteios essenciais neste processo de mudança. Toda a informação clínica do doente deve estar devida e exaustivamente registada num único documento, ser objeto de um processo de classificação e codificação padronizado, que permita distinguir níveis de complexidade e de gravidade e a diferenciação também nos custos. Só assim se conseguem avaliar resultados de um ciclo, ponderar o risco e medir o valor criado.
- A perspetiva do doente e a sua própria avaliação sobre os cuidados recebidos são também relevantes na estimativa do valor criado. O modo como sente a evolução da sua saúde e as experiencias que avalia nos seus contactos com as unidades prestadoras (dor e ansiedade, marcações, preços, informação, tempos de espera, qualidade das instalações, condições hoteleiras e simpatia e diálogo dos profissionais) são dimensões importantes que fazem parte da criação de valor. Não devemos esquecer que o foco no doente é a essência deste modelo.
Na Europa, temos assistido recentemente a desenvolvimentos, ainda que tímidos e localizados, sobre as propostas disruptivas de Porter e Tiesberg. A EIT Health(2), de que a União Europeia é co-fundadora, publicou em 2020 um “Handbook for Pioneers” justamente sobre VBHC e as experiências já em curso ou planeadas. Em França, o Consortium para o VBHC, uma organização sem fins lucrativos, está já a trabalhar no sentido de implementar benchmarks para resultados clínicos, destinados ao setor público e ao setor privado, com a estreita colaboração das associações profissionais da saúde, o Ministério da Saúde francês e a agência pública de financiamento, para desenhar modelos experimentais. Na Holanda, o Dutch Institute of Clinical Auditing (DICA), uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo central é definir indicadores de resultados ajustados pelo risco, trabalha com os hospitais, associações de doentes e seguradoras, no sentido de tornar mandatórios esses indicadores como regulação dos seguros de saúde. Em Berlim, o Charité University Hospital está a desenvolver uma ferramenta que combina um modelo de avaliação dos resultados sentidos pelo doente com as suas experiências vividas em todo o processo (do diagnóstico à reabilitação). No Pais de Gales, o NHS desenvolveu uma aplicação para avaliar os resultados junto dos doentes operados às cataratas e concluiu que 19% responderam que não melhoraram da sua visão.
Em Portugal, temos tido muita dificuldade em evoluir nesta matéria. Há razões estruturais para isso: um sistema de saúde muito fragmentado e sem qualquer definição de complementaridades entre o setor público e o setor privado; um sistema de informação clínica muito rudimentar em que apenas o SNS dispõe de processos clínicos relativamente bem preenchidos e bem classificados e codificados, mas sem qualquer integração de dados entre instituições diferentes; um modelo de pagamento baseado exclusivamente no volume de procedimentos, no setor público com classificação dos doentes por complexidade e gravidade (apenas nos hospitais) e no setor privado de forma exclusivamente atomizada por atos praticados. As companhias de seguros e os subsistemas (a ADSE, por exemplo) têm muitas dificuldades em perceber a pertinência e adequação de muitos procedimentos e não conseguem relacioná-los com um referencial mínimo de complexidade ou gravidade, a que acresce a ausência de uma visão integrada do doente, antes um consumo desordenado e “em silos”, de cuidados de saúde. Tudo isto retira consistência e capacidade em avaliar e comparar resultados, pelo que o valor criado para os doentes não é facilmente monitorizável e os riscos de gastos desnecessários e cuidados inúteis ou de baixa efetividade são muito elevados, sobretudo no setor privado, em que as remunerações se baseiam essencialmente na produção de atos, e em que há incentivos que os estimulam.
Daí ser importante começar a desenvolver projetos baseados no valor e preferencialmente com experiências – piloto nos hospitais. Há já entidades privadas a partilhar com alguns hospitais iniciativas de VBHC que, esperemos, possam ser o embrião de uma mudança de paradigma na avaliação dos cuidados prestados aos doentes. O Governo, as ordens profissionais, as companhias de seguros e as associações de doentes, devem envolver-se de forma determinada e consequente neste processo. É o futuro do sistema de saúde que está em causa, num país com um elevado índice de envelhecimento e em que o reconhecimento da qualidade da medicina praticada e o valor efetivamente criado para cada doente representarão mais saúde para todos e custos mais controlados.
- “Redefining Health Care” – Harvard Business Review Press,2006
- “Implementing Value-Based Health Care in Europe – Handbook for Pioneers”EIT Health, 2020
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO DO VÍRUS DA SARS-CoV -2 (104ª semana: 20 a 26 de fev/2022)
Na passada semana acentuou-se a tendência de descida de todos os indicadores de risco. Destaque para a sensível descida no número médio diário de óbitos (cerca de 33%) e a queda no número de novos casos (também em 33%). O índice sintético mantém-se elevado, embora se aproxime do risco moderado (entre 1 e 2).
. ÍNDICE: 2,04183
. TENDÊNCIA: descida
. COR DO SEMÁFORO: vermelha
. DIMENSÃO MELHOR: número de doentes em cuidados intensivos
. DIMENSÃO PIOR: positividade dos testes
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.