Uma das questões mais sem sentido que nas últimas semanas têm dominado um espaço mediático já de hábito cheio delas é a de haver ou não, de ter de haver ou não, um vice-presidente da Assembleia da República (AR) indicado pelo Chega. Com este partido, no seu sabido esforço de distorção dos factos e das leis, a afirmar que se não tiver um seu vice-presidente isso será inconstitucional. E com muitos “comentadores” a não denunciarem a total falta de fundamento desta alegada inconstitucionalidade (ou ilegalidade), ou a considerarem até que se o partido de Ventura não conseguir eleger o seu vice isso lhe será favorável, por lhe permitir “vitimizar-se”.
Vejamos. A única norma da Constituição sobre esta matéria é a do artº 175, b), nos termos do qual compete à AR “eleger por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções o presidente e os demais membros da mesa, sendo os quatro vice-presidentes eleitos sob proposta dos quatro maiores grupos parlamentares”. Deixando de lado os elementos históricos, esta parte final da norma visa permitir que qualquer um desses grupos proponha um candidato a vice, mesmo não tendo um mínimo de 10% dos deputados exigíveis para propor o presidente – e, no caso, nem o Chega nem a IL têm 10%.
Propostos os quatro candidatos, eles, claro, podem ou não ser eleitos. E o voto é secreto: aqui nem há hipótese de os partidos imporem a controversa “disciplina de voto”. Absolutamente inconstitucional, antidemocrático, além de delirante, seria obrigar os deputados a eleger alguém – e de certo partido, para certo cargo. Aliás, o voto secreto existe também para evitar o “êxito” de qualquer coação ou ilegítima pressão sobre o sentido de voto, para garantir a maior liberdade possível no exercício do voto.
Se fosse imperativa a existência de quatro vices dos quatro maiores grupos parlamentares, a Constituição diria que eles tinham direito a “designá-los”, não a propô-los para votação. A única dúvida que se pode colocar, e não tem nada a ver com o aqui fundamental, é esta: não sendo eleito o proposto por algum partido (até acabar os deputados que tem para propor… E se houvesse obrigatoriedade ela só existiria quanto ao último, ou seja, o menos capaz…), não sendo eleito o proposto por algum partido, pode ou deve ser eleito um outro quarto vice ou a AR fica apenas com três?
Penso que o artº 175, b), não impõe, nem impede, nenhuma destas hipóteses. Mas chamo a atenção para o facto de o artº 15º do Regimento da AR, o único que refere os vice-presidentes, nem sequer dizer quantos são. Assim, em meu juízo contribuindo de forma decisiva para a interpretação de que podem não ser quatro, dispõe apenas que cada um exercerá as suas funções por período correspondente ao quociente da divisão do número de meses e de vices.
Uma inteiramente falsa questão, pois. Cada deputado deve votar de acordo com a sua consciência, que neste caso pressupõe um juízo político sobre a defesa da democracia e a dignidade/qualidade indispensável a quem pode representar o Parlamento, sua “casa”. Ninguém pode impedir ninguém de faltar à verdade, ser populista e demagógico, vitimizar-se; como muito menos pode deixar de fazer o que entende dever ser feito, em defesa de valores e princípios, para impedir outrem de sem nenhum fundamento sério se vitimizar…
O que me parece é que a generalidade dos que sustentam a tese da “vitimização” para defender que o Chega deve ter o seu vice são os mesmos que pensam estar a direita democrática condenada a entender-se com ele para voltar a ser governo, o que pretendem venha a acontecer mesmo a esse preço.
Uma última nota, a propósito de uma AR com 12 elementos do Chega. O Código de Conduta dos deputados exige-lhes, no artº 5º, “urbanidade e lealdade institucional”, especificando em que se traduzem, e no artº 9º, f), acrescenta que se devem “abster de comportamentos que não prestigiem a instituição parlamentar”. Isto reforça a delicadeza e, neste domínio, relevância acrescida que terá a ação de quem vier a presidir a AR. O que deve ser tomado em consideração na sua escolha.
À MARGEM
As ditaduras continuam a existir e a multiplicar-se. Os criminosos da Birmânia mantêm e agravam a repressão. E a Nicarágua, onde houve uma revolução libertadora, é cada vez mais um caso terrível, com os libertadores transformados em tiranos.