Em pouco mais de dois anos vamos ter, de novo, eleições legislativas. Os programas dos partidos políticos, não são, assim, particularmente inovadores, repetindo à exaustão as mesmas ideias, os mesmos valores e os mesmos princípios de 2019. De qualquer modo há algumas novidades e pérolas, na área da saúde, que merecem ser reveladas.
1. Constata-se desde logo uma distinção clara entre as propostas do PCP e do BE, relativamente ao PS e ao PSD. Aqueles partidos apostam, como é seu timbre, num sistema de saúde em que a propriedade, a gestão, a prestação e o financiamento são exclusivamente públicos, restando, para os setores privado e social, os segmentos privilegiadas do conjunto da sociedade (quem tem seguros, pode pagar tudo ou tem subsistemas públicos como a ADSE). Uma nota a propósito deste subsistema, que é defendido pelos partidos mais à esquerda como intocável, precisamente porque se reconhece nele um benefício evidente para os funcionários públicos e cujos serviços são prestados pelos grupos privados de saúde. Pequenas contradições, que dificilmente se entendem…
2. O PS tomou a iniciativa de colocar na agenda a questão da acumulação de funções na legislatura que agora termina. E apresenta como solução o conceito de “dedicação plena”, ao qual a esquerda mais radical contrapõe o conceito de “exclusividade”. O PS aceita a acumulação de funções, mas define para aqueles que optarem pela dedicação plena, algumas condições: mais horas de trabalho semanal, acréscimo remuneratório e um regime de incompatibilidades que limita o modelo de acumulação (tudo a ser negociado com os sindicatos). PCP e Bloco defendem a exclusividade como opção de quem trabalha, sendo curioso verificar que o PCP propõe já no seu programa uma remuneração acrescida (mais 50% sobre o salário-base, e mais 25% na contagem de tempo para efeitos de carreira, benefícios de reforma e outros). À direita, não se descortinam propostas ou abordagens sobre esta questão das acumulações, limitando-se o PSD a referir a necessidade de “… atualização e dignificação das carreiras…”. Não deixa de ser curioso que este partido, que defende uma ampla competitividade entre setores público, privado e social, não tenha sentido a necessidade de propor uma regulação mínima dos processos de acumulação, num setor tipicamente contaminado por incompatibilidades laborais que urge moralizar.
3. O PSD defende de forma categórica o princípio da livre escolha do consumidor, também na área da saúde, o que acontece, aliás, com todos os partidos situados à sua direita. É provavelmente a clivagem mais emblemática entre esquerda e direita na análise dos diferentes programas. No contexto da saúde – já o expliquei aqui várias vezes – a questão do mercado não é meramente ideológica, é também de natureza técnica e económica. Os defensores do mercado livre na saúde, como potenciador do acesso dos cidadãos, melhores respostas e mais eficiência do sistema, esquecem-se de olhar para as evidências do que se passa noutras latitudes e até para as questões técnicas associadas à oferta e procura de cuidados de saúde. A livre escolha não traz mais equidade, porque disponibiliza mais acesso para setores privilegiados da sociedade (rendimentos, residência, educação, contactos e literacia), mas corta-o para aqueles que têm e vivem em condições mais adversas. Por outro lado, o consumo de cuidados de saúde deve ser objeto de regulação e acompanhamento, para que se evitem abusos do lado da oferta e consumismo do lado da procura, sobretudo em modelos de financiamento suportados em impostos ou seguros de base solidária. E isso pode representar, desperdício, prosperidade dos prestadores, aumento das iniquidades sociais e o que será pior, a insustentabilidade do modelo de financiamento. Aqui fica, a propósito, um motivo de reflexão para os partidos que defendem o alargamento da ADSE a todos os portugueses.
4. Apesar destas diferenças, o SNS continua a ser uma referência para a generalidade dos partidos políticos. Deste modo, todos apresentam medidas de melhoria e até alterações de estrutura que permitam dotar o SNS de mais resiliência e mais capacidade de resposta. Um médico de família para cada português, mais USF do tipo B, mais cuidados continuados e paliativos, mais profissionais de saúde, mais apoio domiciliário para os idosos, o fim das empresas médicas de trabalho temporário, de tudo um pouco se repete nos programas eleitorais de todos os candidatos. E aparecem aqui e ali propostas, ainda que tímidas e vagas, sobre a integração de cuidados (cuidados horizontais para o PSD, organização matricial para o BE), um tema central e urgente para a reforma dos cuidados de saúde e a que os partidos políticos dedicaram pouca ou nenhuma atenção. Todos os partidos propõem novos investimentos no SNS, em novos hospitais – o PS retoma o Hospital Central do Algarve, e acrescenta a prometida nova maternidade para Coimbra, o BE acrescenta Barcelos, mas ninguém se lembrou da situação indigna que se vive na zona Oeste, com as populações de Torres Vedras, Caldas da Rainha e Peniche a serem servidas por unidades hospitalares sem condições – novos centros de saúde, mais camas de cuidados continuados e paliativos, mais equipamentos de diagnostico e terapêutica, alargados agora aos cuidados primários (na saúde oral e visual, na saúde mental, etc.).
Pouco se diz, todavia, sobre alterações organizacionais, em todos os programas. Como estabelecer uma visão integrada de cada doente, num país muito envelhecido e com muitos doentes com doença crónica e multipatologia? A visão atomizada de USF, por um lado, e de hospitais por outro, que se mantém em todos os programas, não augura nada de muito melhor para o futuro dos nossos doentes: a via sacra dos tempos de espera para o médico de família, para a consulta que este referencia para um especialista hospitalar e o tempo de resposta do hospital, pode corresponder a anos de espera, insuportável para a vida de muitos portugueses e provocar o entupimento dos serviços de urgência. Precisamos de propostas disruptivas que abanem este estado de coisas e a resignação que isso pressupõe para doentes e profissionais de saúde. Diga-se, a propósito, que o PSD se propõe criar um sistema similar ao do SIGIC (em que os doentes que ultrapassem os tempos de espera previstos nos TMRG – tempos máximos de resposta garantidos previstos no SNS – têm acesso a um vale-cirurgia para poderem ser operados no setor privado) para consultas hospitalares e exames complementares de diagnóstico, o que me parece ser uma boa medida e um grande desafio à efetividade dos serviços públicos. É claro que, sem outras medidas estruturantes, aumentará o “outsourcing” do SNS, as receitas do setor privado e os custos do setor público, de forma pouco sustentável.
A má distribuição de profissionais, sobretudo médicos, pelo território nacional é também objeto de atenção nos programas da grande maioria dos partidos políticos. Em 2016, o governo PS criou um regime especial para atrair médicos para as zonas carenciadas do país, com remunerações substancialmente acrescidas, tempo alargado para estágios e formação, apoio a filhos menores nas escolas, colocação dos cônjuges e subsídio de instalação. É bom recordar que nada disto teve qualquer efeito atrativo sobre médicos jovens que pretendem continuar nos grandes centros urbanos, em que as solicitações do mercado são maiores e os rendimentos podem ser majorados. Agora, muitos partidos incluem nos seus programas de novo a modalidade de incentivos para trabalho em zonas carenciadas. Não me parece suficientemente eficaz para se promover uma melhor distribuição dos profissionais, pois a experiência anterior não deu qualquer resultado. As soluções têm que ser outras, mas é preciso coragem.
5. Passemos agora às “pérolas”, ou seja, propostas que pela imaginação, ineditismo, disparate ou inutilidade, podem ensandecer quem as leia.
O BE e o PCP propõem a “gestão democrática dos hospitais”, como se administrar uma empresa desta envergadura tivesse que incorporar a visão dos interesses corporativos e não tivesse que obedecer apenas às regras de uma gestão competente e ao serviço dos doentes e do país. Para monitorizar estes objetivos e esta missão os mecanismos de controlo e de avaliação são outros.
O BE propõe que o SNS seja excluído da chamada Lei dos Compromissos, como se fosse aceitável que os gastos da saúde fossem para além dos limites devidamente contratualizados e as responsabilidades contraídas não fossem para cumprir. A gestão pressupõe previsibilidade, controlo e cumprimento de objetivos. E os Hospitais não podem ser exceção.
O PCP propõe a criação de uma rede pública de lares de âmbito nacional. Esta ideia nacionalizadora, disruptiva face à atual realidade em que pontificam as IPSS, as misericórdias e os privados, fixaria um modelo padrão para o acolhimento dos idosos e implicaria um investimento desnecessário e incomportável para o Estado, precisamente num momento em que as soluções apontam para modelos de cohousing e de assistência preferencialmente domiciliária.
O Chega, o CDS e o PSD, propõem uma ADSE para todos os portugueses. A questão é muito simples. Com uma ADSE para todos que sentido teria manter o SNS, quando os seus serviços são exatamente os que os beneficiários da ADSE não querem utilizar, preferindo o setor privado? Ao criar esta alternativa terminava o SNS. E quem iria pagar gastos sem qualquer controlo? As taxas a cobrar a cada beneficiário rapidamente se revelariam insuficientes numa sociedade das mais envelhecidas do mundo. Resultado: falência a médio prazo. E depois?
O PS propõe a criação de uma Direção Executiva do SNS, num processo imparável de criação sucessiva de órgãos de coordenação e controlo quando os já existentes vão falhando. Não se lhe reconhece vantagens ou utilidade.
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO Do SARS-Cov-2 (97ª semana – 2 a 8 de janeiro de 2022)
Na última semana assistimos a um significativo agravamento do risco, fruto, sobretudo, do aumento brutal de novos casos diários e da percentagem de testes covid positivos. A variante ómicron, muito mais transmissível, fez disparar aqueles dois indicadores constitutivos deste índice: o número de novos casos diários cresceu, em termos médios semanais, mais de 46% e a percentagem de testes positivos passou de 3,1% para 9,1%, cerca de 3 vezes superior ao verificado na semana anterior. Curiosamente, o número médio diário de óbitos manteve-se constante nas últimas duas semanas (cerca de 16 por dia).
. Índice: 2,36267 (alto risco)
. Tendência: forte subida
. Cor do semáforo: vermelha
. Dimensão pior: número de novos casos
. Dimensão melhor: número de doentes em cuidados intensivos
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.