Viver numa capital europeia cria-nos a falsa segurança de que determinados direitos nos são nos dados como certos. Até recentemente, nunca me tinha sentido tanto uma cidadã indesejada no meu próprio país, com a permissividade justificada e comummente aceite para tudo: a pandemia. Queremos que acabe rápido. Queremos tirar as máscaras, libertar espaços fechados, promover convívios. Mas só até ao limite do que nos é cómodo. Os outros que se mantenham lá longe.
Sortudos todos aqueles que não viram os seus documentos de identificação caducar entre o início de 2020 e a data atual. Entrar neste processo evoca O (verdadeiro) Processo e o próprio adjetivo kafkiano. Rapidamente damos por nós a perder horas, marcações e quilómetros, que convergem para um mesmo absurdo. Os sites de acesso parecem simples, até surgirem as datas disponíveis e todos os códigos necessários para cada pequena operação. O endereço de email? Aguardo a resposta de várias missivas. Felizmente que dispunha de folgas para gastar e não tive de perder dias de férias com isto.
As Lojas de Cidadão e Registos de Notariado tornaram-se autênticas fortalezas, com vários postos com segurança a controlar nomes e assuntos, por listas. Como se estivesse num aeroporto com transbordo transcontinental, sob a ameaça terrorista, em que o mínimo gesto suspeito é encarado como uma agressão passível de represália. Os obstáculos acumulam-se. Os seguranças foram investidos de autoridade para determinar prioridades, porque não há senhas para ordenar os atendimentos – não vamos querer infetar um écran touch, mesmo sendo obrigados a usar álcool gel a cada 10 metros, embora os sensores da impressão digital não sejam desinfetados. Nem as canetas com que assinamos. Talvez haja serviços que funcionem bem. Mas eu estive em três e foi um pesadelo.
À porta destes edifícios acumulam-se pequenos magotes de pessoas, porque os cidadãos são chamados pelo nome, consoante o serviço – a privacidade e a proteção de dados ficam pelo caminho. Os funcionários chamam com o volume de voz possível – também não faz parte do seu trabalho a projeção de voz -, o que obriga a que estes aglomerados se condensem ainda mais de cada vez que alguém assoma por trás das portas automáticas. Aqui já não importa o distanciamento social – é lá fora e são os outros.
A indiferença quanto a atendimentos prioritários foi chocante. Num destes locais não passava ninguém sem ser chamado: uma grávida muito grávida, uma mãe com um recém-nascido, idosos com limitação da mobilidade. Ninguém. Não havia cadeiras de espera, mesmo que estivessem mais de 30ºC e o sol a pino. Já foi chamado, agora perdeu a vez. Que é como quem diz: inscreva-se para daqui a 2 meses. Um idoso queixou-se de não ter marcação, por não saber usar a Internet e ninguém atender telefonemas – também tentei: mais de 15 minutos em linha de espera, a música de fundo em loop. Ah, tem de continuar a tentar. Indivíduos não caucasoides recebiam o destrato: Olhe, você não está para o SEF? Está aqui este nome esquisito começado por J, é o seu?
Quando finalmente conseguimos entrar, conquistado o direito a utilizar um serviço público, eis uma pequena sala de espera. Grita-se: A seguir!! Mas…?! Ah, os senhores é que sabem quem chegou primeiro… Por trás de vitrinas e máscaras, a comunicação é difícil. Mas agrava quando a vontade de ajudar é nula e não há qualquer noção sobre os meandros e falhas do agendamento electrónico. Numa das secretárias ao meu lado: Se não trouxe o papel dos códigos, não lhe posso dar o cartão… Novamente: Volte daqui a dois meses.
Os serviços públicos, em particular os de apoio ao cidadão, não podem ser uma maratona labiríntica, com este grau de inacessibilidade. Não quero imaginar aquilo por que passam os imigrantes, sobretudo os que não dominam a língua. Ou as pessoas sem internet, que têm de pedir favores a estranhos para calendarizar um atendimento.
Assistimos a um desconfinamento gradual, mas queremos que os estranhos continuem longe, as salas de espera vazias, frescas e sossegadas, os corredores largos e amplos, como se fossem reservados exclusivamente para funcionários. Que depois irão jantar fora – aí o vírus já não se pega, sobretudo durante a semana.
A minha Odisseia em modo sucinto: o meu cartão de cidadão caducou há um ano. Respondi à SMS, mas deixei passar o pagamento da referência multibanco. Quando tentei agilizar um atendimento, houve um problema com os códigos – introduzi os que precederam a alteração de morada. Como foram aceitando os cartões em termos legais, fui adiando. Entretanto, perante uma perspetiva de viagem (finalmente!), foi imperativo tratar do passaporte. Criei um agendamento fora de Lisboa e lá fui. Ah, mas não posso tratar do seu passaporte tendo o CC caducado! Como?! Ah, espere, mas a senhora tem um CC pronto, que vai expirar este mês por não ter sido levantado. Está pronto há um ano. Como?! Aqui não posso fazer mais nada, mas talvez dê para fazer o passaporte, vamos ver se o sistema deixa… (Como é que dizia aquela personagem de Little Britain?: Computer says no… Seria cómico, se não fosse real.) Passaporte tratado. Vamos lá tentar salvar o CC. Mais um agendamento em Lisboa: Aqui não dá, tem de ir a outro sitio!, Mas…, vai expirar! Depois tenho de voltar à estaca zero?, Tente ir lá pedir à porta. À porta?! Com aquela muralha intransponível, filas incalculáveis, um Sol abrasador, horas em pé… Pois, não posso ajudar. Não, mas ainda deu a machadada final: Mas teve um ano para tratar disto, porque é que não o fez antes? Todo este percurso foi uma penitência interminável. Trabalho numa enfermaria com doentes com Covid e fui um agente potencialmente transmissível durante muitos meses. Evitei ao máximo instalações fechadas com pessoas não vacinadas e este foi um deles. Uma desleixada, portanto. E que tivesse sido, nada justifica ter de passar por isto. Etapa final: já com a derradeira porta de entrada a 20 metros, depois de 2 horas em pé, percebo que há um funcionário que vem até cá fora, observa a fila e aborda quem decide levar para a sua Ítaca burocrática. Inacreditável.
É inadmissível que os serviços públicos dependam da boa vontade de funcionários e que se tenham tornado inacessíveis a este ponto. Na Saúde, estamos a tentar voltar ao normal, agilizando atendimentos à distância, quando as situações clínicas assim o permitem, e protegendo as populações mais vulneráveis. Ainda com muito trabalho acumulado junto dos doentes crónicos e um SNS à beira da rotura – mas esse é todo um outro assunto complexo.
Quanto a documentos, tive melhor sorte que K., e creio estar despachada até 2030 – espero que, até lá, muitas coisas mudem. Em breve os serviços funcionarão sem marcação. E, à luz dos conhecimentos atuais, sabemos que a transmissão por contacto é ínfima. Todo este aparato é desnecessário. Usemos as máscaras, desinfetemos as mãos. Enquanto cidadãos, ainda vamos ter pandemia para mais uns tempos, mas isso não pode servir de desculpa para desumanizarmos o contacto com o outro. Sobretudo quando o outro precisa da nossa ajuda.
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