Sempre parti do princípio que, numa família, todos devem colaborar na medida das suas capacidades. Em criança, desde muito cedo comecei a ajudar no trabalho doméstico e a cuidar dos meus irmãos. Ensinei as minhas filhas desde pequeninas a ajudar a arrumar a casa sempre que necessário e na adolescência começaram a cozinhar. Gostavam naturalmente de imitar as atividades dos adultos com quem conviviam e começaram a participar nelas à medida que cresciam e obtinham competências. Ao lhes dar oportunidades de mostrar as suas capacidades e fazendo-as sentir que o seu contributo tinha muito valor, aumentei a sua autoestima e dei-lhes ferramentas para transitarem para a vida adulta.
O trabalho, desde que apropriado, é uma atividade social humana fundamental (“homo faber fortunae suae”) e a participação das crianças nas atividades laborais pode trazer benefícios para o seu sustento e qualidade de vida, fornecer aprendizagem para complementar e apoiar a escola, oferecer benefícios psicossociais e ajudar a desenvolver relações e responsabilidades sociais. A participação das crianças no trabalho é especialmente evidente quando as crianças crescem em comunidades agrícolas, mas também sempre que o trabalho dos adultos não está separado do espaço das áreas de habitação.
A minha irmã – Marina Temudo – que trabalha há muitos anos na Guiné Bissau, contou-me que nas aldeias, é frequente os pais darem às crianças um pedacinho de terreno para semearem, uma árvore de fruto para plantarem ou animais para cuidarem. Se são bem-sucedidas nessas tarefas, irão seguramente ter sorte na vida. Os guineenses acreditam, tal como antigamente os nossos lavradores, que existem “mãos leves” e “mãos pesadas ou quentes”, isto é, que ou se nasce com um dom para cuidar, ou a vida não nos vai ser favorável. O fruto das sementeiras e os animais que as crianças criam, serão por eles vendidos mais tarde e o que daí vier pertencer-lhes-á por direito. Poderão comprar roupa, guloseimas, ou guardar esse dinheiro para mais tarde irem estudar na cidade. Incutem-lhes dessa forma um sentido de responsabilidade e uma noção do valor do dinheiro que livro algum poderá jamais ensinar. Pesquisando na internet, encontrei uma tese sobre as crianças na sociedade colonial Guineense e li-a em diagonal. Decidi telefonar à minha irmã para aprofundar o tema. Aí, ela aconselhou-me a ler uma tese de mestrado feita por uma sua aluna – Inês Marques Botelho – há 2 anos, sobre os modos de vida e socialização das crianças numa aldeia Felupe na Guiné Bissau.
A minha irmã começou por fazer o curso de Agronomia, mas logo com 18 anos se apaixonou pela sociologia agrária. Nas férias de verão, findo o primeiro ano da faculdade, iniciou um estudo em Guadramil, aldeia comunitária de Trás-os-montes, sob orientação do seu professor de sociologia, o antropólogo Joaquim Pais de Brito. Durante cinco anos passou os três meses de verão nessa aldeia, fazendo pesquisa de campo. Mais tarde, após terminar o curso, iniciou um trabalho de pesquisa na Guiné Bissau, passando desde há mais de 30 anos, vários meses por ano em África. Durante as suas estadias na Guiné, ela vive em aldeias, em condições muitíssimo precárias, sem água canalizada, sem eletricidade, sem assistência médica, comendo o que eles comem, vestindo-se com capulanas, dormindo em tabancas, alimentada com arroz, peixe e frutos. Já por várias vezes ficou gravemente doente, mas adora aquela gente, fala crioulo fluentemente, fazem-lhe festas nas aldeias quando lá chega, é íntima de chefes das aldeias, inúmeras meninas se chamam Marina… Eu sempre soube estas coisas que ela me ia contando nas festas de família onde estamos juntas, mas via sobretudo o estado de magreza, quase subnutrição, em que ela chegava, a pele manchada pelo sol, os efeitos laterais da medicação contra a malária. E não percebia aquela paixão que a fazia voltar sempre à Guiné. Quando eu própria comecei há dez anos a trabalhar regularmente em Cabo Verde, passei a compreendê-la melhor.
– Tens que ler a tese da minha aluna – disse ela quando lhe telefonei – Ela fez fotos e fimes que podes encontrar no Youtube.
Enviou-me a tese e o endereço dos vídeos no Youtube1. Começou aqui a minha aventura. Durante dois dias, apesar do isolamento causado pelo estado de emergência provocado pelo COVID 19, eu vivi em Edjaten.
Edjaten é uma aldeia situada na costa ocidental da Guiné, na região de Cacheu, perto da fronteira com o Senegal. Os seus habitantes pertencem à etnia Felupe e são uma sociedade agrária dedicada à cultura do arroz (orizicultura) em terrenos retirados ao mar por meio de um sofisticado sistema de diques, que retêm a água das chuvas e regulam as entradas e saídas de água e permitem controlar a salinidade e acidez dos solos.
Esta sociedade é composta por um conjunto de povoações, minoritariamente situadas na Guiné-Bissau (cerca de vinte na Guiné-Bissau e a maioria no Senegal), autónomas no domínio político e religioso e economicamente auto-suficientes. O conjunto é ligado e regido por um mesmo calendário orizícola e um complexo conjunto de calendários iniciáticos e de cerimónias religiosas, promotoras do sentimento de pertença e de identificação. É uma sociedade patriarcal e, como tal, as crianças pertencem ao pai ou família deste no caso da morte do mesmo. É um povo que vive para o trabalho, aproveitando o mesmo para sociabilizar e estabelecer com ele uma relação espiritual, através de rituais individuais e coletivos. Os ritmos desta sociedade colam-se aos do ecossistema, dependendo dos produtos que a natureza lhes dá. Todo o território da aldeia é simultaneamente individual e comunitário, usufruto dos habitantes e pertença dos espíritos. A aldeia tem 72 agregados familiares, cerca de 350 habitantes, e sessenta e quatro por cento destes têm menos de vinte anos. A escola primária leciona da primeira à terceira classe em horário da manhã ou da tarde. A quarta classe é lecionada numa outra aldeia maior que dista cerca de 10 km de Edjaten, para onde as crianças se deslocam a pé. A escolarização é muito valorizada e alguns migram para as cidades de forma a prosseguir os estudos.
O sistema agrário dos felupes é trabalhoso e complexo e depende de uma sofisticada coordenação entre o trabalho a nível doméstico, concretizado por pais e filhos e o trabalho colectivo, levado a cabo por grupos de trabalho de bairro e de aldeia. Os trabalhos organizados em grupo são divididos por género, grupos etários e estado civil. O pagamento das tarefas é tabelado e feito ao grupo, sendo habitualmente o provento guardado para as festividades e cerimónias da aldeia.
O pastoreio do gado (uma manada pode ter 60 cabeças) é feito por grupos de rapazes – os baquiadores (vaqueiros em crioulo) – dos 3 aos 15 anos. Todas as vacas são pastoreadas pelas crianças, independentemente de quem seja o seu dono, numa ou mais manadas. Esta atividade desenrola-se, nos dias da semana, durante os períodos da manhã e da tarde, em articulação com o horário escolar de cada um. Os rapazes têm autonomia para se organizar como melhor entenderem. Ao fim de semana não há tanto rigor nos horários e alguns elementos do grupo são dispensados desta tarefa, embora todos queiram participar. Os filhos dos donos das vacas estão sempre presentes, e normalmente são eles que decidem onde pastar o gado, sob a orientação prévia dos pais. Enquanto vigiam o gado, os rapazes aprendem com os mais velhos a construir arcos e flechas, caçar, pescar, confecionar cordas e a subir a pequenas palmeiras. Por volta dos quinze anos já muitos sabem subir às palmeiras mais altas para colherem a seiva (vinho de palma) e os frutos que servirão para fazer o óleo de palma. Também lutam, cantam e dançam. Estas últimas três atividades são manifestações de grupo tradicionais, nas quais cada idade tem um conjunto de técnicas próprio revelado em cerimónias e festas. A relação com o gado bovino vai sendo aprimorada, havendo uma competição saudável entre os rapazes para melhor dominar os animais que lhes pertencem, praticando a pega e adestramento dos mesmos. Conseguir desempenhar determinados truques com a sua vaca é um motivo de orgulho para os rapazes, que ganham a admiração e respeito do grupo. Os adultos, apesar de não pastorearem com os mais novos, procuram sempre orientá-los, seja observando como trabalham ou conversando sobre o assunto. Se falharem no seu ofício, os vaqueiros serão advertidos e aconselhados pelos mais velhos a trabalhar doutra maneira. Se a situação se repetir e os estragos nas culturas de vizinhos forem tais que levem a perdas na produção, os pais das crianças poderão ter de pagar ao lesado uma cabeça de gado como sanção pelo sucedido e as crianças terão de contribuir com os rendimentos dos seus grupos de trabalho.
Para além de pastorear o gado e pescar desde os 7 anos com armadilhas ou anzol, desde os 11 anos, os rapazes começam a aprender as técnicas de lavoura e podem aventurar-se a dar os seus primeiros passos nos palmares de família, aprendendo com os rapazes mais velhos do seu bairro.
Os trabalhos que são atribuídos às raparigas são de vária ordem. Desde muito cedo -quatro, cinco anos – as meninas procuram aprender as tarefas domésticas, começando por imitar as mães e irmãs mais velhas a lavar a loiça, pilar alimentos, joeirar arroz, acender o lume, cozinhar, varrer os pátios, acarretar água. Ainda com esta idade, elas começam a participar na plantação de arroz nas bolanhas e nas atividades da horta comunitária (semear, regar, remover infestantes, etc). Também trabalham com as mães na produção de vassouras que irão ser vendidas nos mercados. Uma pequena vassoura custa o mesmo que um pacote de 60g de babas, os biscoitos mais famosos do país. As crianças produzem as suas próprias vassouras e vendem-nas às mães, para depois comprar as suas babas.
Os felupes pescam durante todo o ano, sendo o peixe o acompanhamento habitual do arroz. Há várias modalidades de pesca, sendo sempre uma atividade coletiva. As mulheres e as meninas também pescam. Dominam este ofício muito mais precocemente e com muito mais assiduidade que os rapazes. A partir dos 7 anos, as raparigas, exímias pescadoras, são frequentemente encarregues de angariar o mafé (acompanhamento do arroz) para as refeições quotidianas da família. A modalidade da pesca feminina é feita com o caiacácu. O caiacácu é um cesto com buracos, artesanal, à base de nervuras de folhas secas de palmeira, cruzadas em xadrez e atadas por cordas ou, mais recentemente, por materiais plásticos de compra. Ao determinar onde vão pescar, distribuem-se pela área estrategicamente, pescando da periferia para o centro, procurando apanhar todo o peixe que conseguirem, por arraste do equipamento, debaixo de água (semelhantemente à estratégia que os homens adotam nas caçadas coletivas). Caso se trate dum canal estreito, a lógica é a mesma, mas neste caso dividem-se em duas equipas, e começam a pescar das pontas do canal até se encontrarem no meio. Algumas ficam para trás, na tentativa de apanhar os peixes que escaparam às outras. A estas últimas incube-se ainda a tarefa da captura de pequenos peixes e crustáceos enterrados na lama.
Não somente na pesca, mas nos vários ofícios da vida na tabanca, não se espera que alguém ensine; observa-se como trabalha quem sabe e procura-se “replicar a tecnologia”, até que se consiga fazer igual.
As crianças mais pequenas têm também um papel fundamental na agricultura. Elas vigiam os campos após as sementeiras, para evitar que os pássaros desenterrem as sementes. Também a coleta de determinados frutos e tubérculos (tambacumba e cabaceira, entre outros) é incumbência dos mais pequenos. Os pais oferecerem pintos aos mais novos, para lhes incutir a responsabilidade do cuidado animal.
A participação das crianças nas várias atividades da sociedade tem uma forte componente pedagógica. Nas suas brincadeiras elas estão sempre a fingir que já são adultos. Mas durante todo este tempo elas estão a fortalecer os seus músculos e a sair da sua zona de conforto, de modo que o ‘faz de conta’ as ajuda a crescer. Ao participar no trabalho a criança aprende como se faz e porque se faz. Para além dos aspetos técnicos, aprendem a trabalhar em equipa e a dar valor ao trabalho árduo, o que distingue a sociedade Felupe das demais, pois o prestígio do homem é concedido em função das suas capacidades de trabalho. Assim, o trabalho não é visto como um mal necessário, mas como um meio de obter o respeito e admiração dos seus pares e dos adultos. É voluntariamente que mostram desejo em aprender todo o tipo de atividades e tarefas próprias do seu género e idade.
Em Edjaten, as crianças, ao formar equipas de trabalho, aprendem a gerir o tempo, o espaço e os recursos humanos e materiais. Ao assumirem responsabilidades em grupo, estão a adquirir competências sociais, como confiança, lealdade, cumplicidade e a criar laços e amizades robustas para toda a vida . Também deste modo, a sua autoestima e realização pessoal, bases para a descoberta da identidade, se adquirem através do reconhecimento e respeito da família e da sociedade.
Na cultura occidental, com a redução da taxa de natalidade e o desenvolvimento da era digital, as crianças não só deixaram de participar no trabalho doméstico como também de brincar ao faz de conta. A maioria não tem irmãos e vive enclausurada em apartamentos, salas de aulas e de atividades, centros de brincadeira artificiais. Poucos são os que ainda têm a oportunidade de se sujarem com lama e esmoucar os joelhos nas pedras. Os pais, julgando que estão a dar o melhor aos seus filhos, nada lhes exigem, transformando-os nuns seres egoistas e incapazes. Como Pediatra, aconselho sempre os pais a obrigarem os filhos a participar em tarefas adequadas à sua faixa etária. Devem negociar com a criança ou adolescente as tarefas diárias, anotá-las num papel e fazer cumprir o que foi acordado. Se a criança não falhar, deve receber uma recompensa no fim de semana e ser elogiada, de forma a aumentar a sua auto-estima. A complexicidade das tarefas deve aumentar progressivamente, assim como a recompensa. Ao contrário do que poderíamos imaginar, elogiar a capacidade de trabalho, de persistência, de lealdade de uma criança, contribui mais para aumentar a sua auto-estima que dizer-lhe que é muito bonita. Nem todos temos a sorte de ter um pedaço de terra para cultivar, mas muitos têm varandas ou terraços. Porque não oferecer às crianças vasos, terra e sementes e ensiná-los a cuidar ? Já imaginaram o prazer que elas terão ao ver tomates cereja a crescer e a amadurecer, colherem-nos e fazerem uma pequena salada para acompanhar uma refeição? Pode ser que o passo seguinte seja quererem candidatar-se a cultivar uma horta urbana do município. E com isso descobrir como é bom fazer coisas com as nossas mãos e que o trabalho nos ajuda a sermos melhores.
Pais, educadores: vamos aprender com os Felupes e arranjar um “lá fora” para as nossas crianças?
1 – Vídeo dos vaqueiros e das pescadoras