Iniciámos com evidente sucesso a longa campanha de vacinação contra a covid. No primeiro domingo a seguir ao Natal, os primeiros portugueses começaram o seu processo de imunização. Havia uma forte carga simbólica nos rostos de todos os intervenientes e nas escolhas feitas, suponho que pelo governo, dos primeiros a ser vacinados. A presença das autoridades de saúde e dos responsáveis políticos, fortemente acompanhados pelos media, deixou perceber a importância do momento. Começámos pelos médicos hospitalares nos seus locais de trabalho, o que simbolizou bem o espaço e os protagonistas onde a luta contra a covid tem sido mais dramática e mais desgastante. Faltou, talvez, dar voz e imagem a outros profissionais, principalmente aos enfermeiros, que é o grupo profissional que mais tempo tem estado ao lado dos doentes e em que se registou mais casos de infeção. Os cargos políticos mais relevantes do País teriam prioridade, por diversas razões plausíveis, mas os três (Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e Primeiro-Ministro) recusaram ser vacinados antes do seu momento. Ficou-lhes bem este sentido de equidade, mas também ninguém criticaria que, com a sua exposição no momento da primeira toma, o seu exemplo pudesse contribuir para mobilizar todos os portugueses para uma adesão sem receios.
Foi pena que neste arranque, os lares e os idosos, afinal as maiores vítimas da pandemia, não tivessem, no mínimo, uma ação simbólica com a mesma visibilidade. É certo que irão já iniciar o seu processo de vacinação, mas seria a oportunidade para homenagear os doentes e as famílias que mais têm sofrido nesta crise e, sobretudo, colocá-los, pelo menos, em pé de igualdade com os profissionais.
Importa também realçar a logística montada pela EU, pela Pfizer/Biontech e pelo governo português, para que as vacinas chegassem ao ponto de consumo sem problemas e a tempo e horas. Foi uma operação complexa e organizada em tempo record. O transporte, a primeira armazenagem, o acondicionamento a muito baixas temperaturas, a separação e encaminhamento dos lotes para os diferentes pontos da rede, a segurança de toda a operação e a parte invisível dos sistemas de informação (identificação e registo dos vacinados, previsão de dia e hora para a segunda toma, a farmacovigilância sobre efeitos adversos), tudo pareceu ter corrido pelo melhor, apenas com uma pequena mancha para os lados de Évora, com a disputa de protagonismo entre a GNR e a PSP, proverbial, diga-se, em abono da verdade.
Segue-se, agora, a parte provavelmente mais difícil do processo vacinal: quando e como chegar aos 10 milhões de portugueses e com quantas tomas (face à expectável chegada de vacinas de outros laboratórios).
E aqui temos vários escolhos pela frente. Desde logo, e digo-o com pena, o próprio plano vacinal, em que as prioridades são muito discutíveis, pouco claras e iníquas. Parte de um pressuposto errado sobre os riscos de mortalidade, ao afirmar que 97% dos óbitos por covid ocorre em cidadãos com mais de 50 anos. É verdade, mas esta constatação é despropositada e falaciosa, porque mais de 90% dos óbitos ocorre efetivamente em pessoas com mais de 70 anos e cerca de 70% em pessoas com mais de 80 anos. A fronteira dos 50 anos é, assim, fruto de uma ideia sem substância técnica, que depois se aplica estatisticamente, mas não tem qualquer relevância em matéria de informação e de conhecimento, desvirtuando até a realidade. Se o foco fosse, e parecer-me-ia bem, dar prioridade aos cidadãos em maior risco, e este fosse calculado pela probabilidade de morte, teríamos que dar prioridade aos cidadãos com mais de 80 anos e não com mais de 50. A probabilidade de um cidadão infetado com covid-19, com mais de 80 anos, falecer, está hoje nos 14% e do mesmo acontecer a um cidadão entre 50 a 60 anos está nos 0,30%. É estranho que tantos e tão reputados especialistas tenham chegado àquela fasquia absurda do risco a partir dos 50 anos. Mas o plano deixa transparecer algumas hipotéticas razões. Desde logo, a falta de convicção com que sempre se refere aos benefícios das vacinas em populações mais idosas, face à informação ainda insuficiente sobre a matéria. Neste sentido, incluir como prioritários apenas os mais velhos, um conjunto de cidadãos com elevados riscos de ineficiência na toma da vacina, poderia ser encarado como mero desperdício e representar um atraso no processo de imunização. Os peritos aplicaram a mesma fasquia dos 50 anos para os cuidados intensivos e para os internados com Covid em geral e tenho fortes suspeitas de que a mesma foi de novo aplicada sem nenhuma objetividade ou interesse estatístico. Diga-se, a propósito, que as fontes de informação utilizadas referem-se a abril de 2020, não tendo em conta a significativa evolução no volume e caraterísticas dos doentes internados entretanto verificada.
Mas passemos à definição da grelha de prioridades e comecemos por algumas preocupações já vindas a público:
1. Profissionais de saúde do setor privado
O plano não discrimina profissionais de saúde dos setores, público, privado ou social, pelo que estão todos os profissionais incluídos. Outra coisa diferente é saber quando é que o setor privado é mobilizado para a vacinação. Convém dizer que esta discriminação é mais ténue do que se possa pensar, pois muitos profissionais de saúde trabalham simultaneamente nos três setores. Mas não é uma matéria da qual o governo se possa alhear.
2. Utentes sem processo clínico no SNS
É uma questão prática à qual o Governo vai ter que responder. Sabemos que cada vez mais portugueses têm hoje acesso a seguros de saúde e a subsistemas como a ADSE. Calcula-se que mais de 30% dos portugueses poderão, por essa razão, estar fora do radar do SNS e, por isso, nunca serão incluídos nas primeiras prioridades. Ao mesmo tempo, há muitos cidadãos que não frequentam os centros de saúde (30% dos inscritos) o que faz crescer o contingente de utentes fora do radar. Como corrigir esta falha de informação e colocar esses cidadãos na grelha de prioridades? Será que uma simples declaração médica com informação clínica sobre patologias associadas é suficiente? E quem a poderá passar? E será objeto de alguma validação posterior por parte do SNS? E não estaremos aqui a criar exceções que tornem o processo ainda mais iníquo?
3. Omissões
Muitos doentes com patologias graves previstas no plano, mas com menos de 50 anos, percebem que a sua situação não é objeto de qualquer prioridade, pelo que irão conformar-se a receber a vacina na chamada 3ª fase – toda a restante população. É uma lacuna grave do plano que deve ser rapidamente colmatada.
Do mesmo modo, doentes transplantados, com HIV e outras patologias auto-imunes, deveriam ser esclarecidos publicamente sobre o momento da sua vacinação. Se são ou não prioritários e porquê. Não basta que os especialistas tenham dúvidas ou saibam de contraindicações. Os cidadãos têm o direito de ter uma informação verdadeira e transparente, sob pena de alimentarmos temores e ansiedades desnecessários e perigosos.
4. As comorbilidades prioritárias
O plano prevê dois tipos de comorbilidades associadas, dando a umas mais prioridade face a outras. Não se entende tal preciosismo, que distingue, por exemplo, uma DPOC de um doente com cancro ativo ou de um doente cardíaco face a um doente com insuficiência hepática ou com diabetes. Todas estas situações deveriam estar incluídas numa prioridade única, o que simplificaria todo o processo. Do mesmo modo, parece iníquo que um cidadão saudável com 65 anos esteja na mesma prioridade de um doente com os mesmos 65 anos com, por exemplo, uma neoplasia ativa. Pior ainda será a situação de um doente de 40 anos com uma neoplasia ativa, que não está em nenhuma prioridade e será arrolado para a posta-restante, como os saudáveis de 20 anos.
Enfim, esperemos que estas lacunas e falhas do Plano de Vacinação contra a covid-19 não comprometam os objetivos de imunização pretendidos e, sobretudo, não ponham em causa a prioridade aos cidadãos em maior risco. Simplicidade, transparência e equidade são qualidades que se impõem neste longo caminho, sob pena de vermos o governo enleado num processo cheio de alçapões em que será difícil não cair. À Comissão de Coordenação pede-se alguma humildade para corrigir erros e minimizar omissões, sabendo que estamos num processo com poucas certezas, muitas contingências e com os holofotes sempre ligados.