Acusado de ser discreto e sem carisma, Joe Biden ficará, desde já, com o seu nome ligado a dois momentos transformadores da política americana e, em certa medida, da História mundial, neste século. Em 2008, ao lado de Barack Obama, ele ajudou a abrir o caminho da Casa Branca para o primeiro Presidente negro, contribuindo com a sua moderação e experiência para dar credibilidade a um projeto de esperança, capaz de enfrentar a crise financeira mundial e o descrédito internacional em que os EUA se encontravam após as aventuras belicistas de George W. Bush. Agora, em 2020, Joe Biden volta a encontrar o caminho da Casa Branca, desta vez como cabeça de cartaz, e acompanhado de Kamala Harris, a primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente. Ao dois cabe-lhes a responsabilidade de um mandato com uma tarefa precisa e imprescindível nestes tempos: cortar com a herança de quatro anos de Donald Trump e, mais uma vez, fazer devolver a esperança na democracia americana e voltar a mudar a imagem do país no mundo.
A festa observada nas ruas logo após a projeção do resultado final dos votos fez lembrar, em certa medida, a que se viveu em muitos lugares da América há 12 anos, quando o sorridente e carismático Barack Obama parecia iniciar uma nova era para o país. Desta vez, a Joe Biden ninguém lhe pede uma tarefa dessa dimensão e magnitude – até porque é impossível esquecer que à esperança de Obama sucedeu a truculência e a fábrica de mentiras de Trump, e convém, por isso, não ter espectativas demasiado elevadas.
O mandato de Joe Biden é, repito, bem preciso e de uma extrema simplicidade: fazer os Estados Unidos da América regressarem à sua normalidade, fazer com que os quatro anos de Donald Trump sejam vistos, na História, como um pequeno episódio sem importância, como um sobressalto sem outras consequências do que a normalização do Twitter como arma instantânea de comunicação política.
Na sua primeira declaração pública logo após a agência Associated Press (e, de imediato, os restantes órgãos de comunicação social dos EUA) ter declarado a sua vitória nas eleições de 3 de novembro, Joe Biden fez questão de enunciar a base principal do seu programa político. E não precisou de muitas palavras: “É tempo da América unir-se. E curar-se”.
Este programa de intenções, aparentemente simples, é nas atuais circunstâncias de uma dificuldade extrema. Unir a América é, depois de quatro anos de Trump, uma tarefa ciclópica, que vai exigir muito mais do que a habilidade diplomática do novo Presidente ou a energia da sua vice-presidente. Para unir a América, Joe Biden vai precisar, acima de tudo, de estabelecer novos canais de comunicação com o Partido Republicano, vai ser obrigado a arranjar forma de ser ouvido pelos eleitores de Trump, vai ter de se empenhar em restabelecer a confiança nas instituições e, finalmente, vai ter que convencer uma nação de que a Verdade é o princípio sobre o qual se alicerçam todas as normas de convivência em sociedade – apesar das diferenças de opinião.
Unir a América pode parecer um objetivo quase oco ou banal, mas representa, na verdade, exatamente o contrário do programa de Donald Trump que, ao longo de quatro anos, mais não fez do que se esforçar, ao máximo, por aprofundar as divisões, incendiar as clivagens, impulsionar a raiva e a intolerância.
Há quatro anos, no seu discurso de aceitação da derrota, Hillary Clinton manifestou a sua admiração por ter descoberto, durante a campanha eleitoral, que o país estava “mais profundamente dividido do que pensava”. Pois, quatro anos depois, apesar da vitória de Joe Biden, com a maior votação de sempre, essa divisão é ainda mais profunda e tensa. Se é verdade que Biden conseguiu mais 9 milhões de votos do que Hillary Clinton, não se pode ignorar o facto que Donald Trump aumentou também a sua votação, face a 2016, em quase mais 8 milhões de votos – e isto, sublinhe-se, após quatro anos de Donald Trump na presidência…
A clivagem é de tal ordem que hoje os EUA são, na verdade, quase dois países a viver em paralelo. Dois países em que, consoante o partido que se apoia, as pessoas têm visões e opiniões completamente opostas umas das outras sobre quase tudo – o que até já foi comprovado por cientistas da universidade de Carnegie Melon, que descobriram como as pessoas de esquerda e de direita utilizam palavras diferentes quando se querem referir aos mesmos conceitos.
Os EUA são hoje um país em que, por exemplo, as sondagens revelam que 94% dos democratas consideram que a resposta à pandemia tem sido “muito má”, mas em que 84% dos republicanos responde que tem sido “muito boa”.
Num país dividido por Donald Trump, a verdadeira e principal tarefa de Joe Biden vai agora iniciar-se: derrotar o Trumpismo, que continua impregnado em metade da nação.