O caso do lar de Reguengos continua a ocupar o espaço público, com novas peripécias e novas notícias sobre o que realmente se passou. Deixo aqui algumas pontas soltas para reflexão:
1. A mobilização dos médicos para prestar cuidados aos utentes
O Presidente da ARS do Alentejo, logo que tomou conhecimento da tragédia que se avizinhava, providenciou a presença permanente no lar, dos médicos do ACES a que pertence. Tal decisão estava devidamente legitimada pelo Despacho da Ministra da Saúde 4959/2020, de 20 de abril e publicado em DR a 24 do mesmo mês, que atribui aos médicos dos centros de saúde a responsabilidade de acompanharem os utentes dos lares, e nos lares, nesta situação de pandemia. Sabe-se hoje que os sindicatos e a Ordem dos Médicos se opuseram a essa colaboração, por razões aparentemente diversas das invocadas quanto às condições estruturais e funcionais do lar (cansaço, férias marcadas e local de trabalho fora do concelho). O Presidente da ARS viu-se forçado a fazer, por escrito, a respetiva escala nominativa que, algum tempo depois, parece ter sido cumprida. Entretanto, e com a ajuda do Ministério da Defesa (o coordenador regional da luta contra a pandemia é Sec de Estado da Defesa), foi possível prestar cuidados médicos aos utentes, através de médicos militares, separando-os e deslocando-os para a estrutura de campanha entretanto criada. Por que razão a Ordem dos Médicos desaconselhou os médicos do SNS a socorrer os utentes do lar de Reguengos de Monsaraz, abandonando-os à sua sorte? Ainda não percebemos bem, havendo todavia dois cenários possíveis: o receio de contágio ou, então, manter os médicos na sua zona de conforto quanto a férias, local de trabalho e descanso. Nenhum destes cenários me parece aceitável à luz dos princípios éticos que norteiam a profissão médica e que muito bem recordou o Sec. de Estado da Saúde, em recente conferência de imprensa.
2. O inquérito da Ordem dos Médicos ao lar
Os lares não estão sob a alçada ou tutela política, administrativa e funcional do Ministério da Saúde. São ERPIs (Estruturas Residenciais para Idosos), cujo modelo de instalação e funcionamento obedece a regras sob a orientação e controlo da Segurança Social. Os seus utentes não são enquadrados como doentes, mas pessoas que carecem de apoio social e de manutenção para as atividades da vida diária, dada a sua avançada idade ou elevado nível de dependência. Quando ficam doentes são observados, nalguns casos, por um médico privativo do lar ou, em situações mais severas, transferidos para o hospital público mais próximo. Em tempo de pandemia, e pelo Despacho da ministra da saúde acima mencionado, os utentes dos lares têm direito a assistência médica e acompanhamento médico no lar, sendo objeto de transferência para o hospital apenas os doentes em que a avaliação clínica o determine. É inexplicável como os sindicatos médicos tentam impedir a execução deste Despacho, como sucedeu em Reguengos e mais recentemente no Barreiro. E é intrigante registar o silêncio cúmplice da Ordem dos Médicos quanto a esta postura de desafio contra determinações ministeriais, e em prejuízo dos utentes. Uma desautorização inqualificável que urge esclarecer… e sobre a qual a Odem dos Médicos se deve pronunciar sem subterfúgios.
A iniciativa da Ordem dos Médicos foi, assim, por um lado, extemporânea, porque em vez de promover o auxílio aos doentes, preferiu esperar pelo desfecho e fazer subsequentemente um inquérito e, por outro lado, exorbitante, porque nada nos seus estatutos prevê a sua intervenção em estruturas residenciais para idosos. Importa, a propósito, dizer que as atribuições da Ordem dos Médicos estão reservadas à defesa dos interesses dos destinatários dos serviços dos profissionais que representa e também dos interesses gerais da profissão médica. Nenhuma destas circunstâncias está presente num lar de idosos, exceto quando um médico é aí chamado e presta os seus serviços. E auditar estes atos, pode passar pela participação da Ordem dos Médicos, em consonância com decisões a tomar pela entidade proprietária do lar ou por parte da tutela, mas nunca por sua única e exclusiva iniciativa, configurando esta, claramente, uma intromissão abusiva. O próprio bastonário da Ordem dos Médicos reconheceu, em dezembro passado, em audição parlamentar sobre o caso do bébé sem rosto, que a Ordem não tem competências para auditar, por sua iniciativa, serviços de saúde públicos ou privados. Agora, pelos vistos, tem outra interpretação dos estatutos, incluindo até serviços fora do âmbito da saúde. Como neste caso os médicos se recusaram, “à priori”, a prestar serviços clínicos aos utentes do lar, não se percebe como, no momento seguinte, se apresentam para inquirir sobre as condições de trabalho de uma estrutura que lhes é funcionalmente estranha. A Ordem dos Médicos lá saberá as suas motivações neste caso concreto, até porque nunca interveio deste modo em variadíssimas situações idênticas que têm ocorrido nesta pandemia. Mas que fica muita coisa por explicar, inclusivamente a súbita mudança de opinião do bastonário, lá isso fica…
3. A politização do caso
Alguns partidos políticos da oposição, a reboque dos acontecimentos, “descobriram” que os cargos públicos mais importantes da Região estão ocupados por militantes do PS. Não seria novidade que assim fosse, porque em democracia quem ganha eleições gerais e autárquicas deve governar e, em lugares de nomeação e confiança vigora o princípio da discricionariedade, que deve ser, obviamente, utilizado com bom senso e sentido de Estado. Neste caso há três notas soltas que importa registar: a) o presidente da entidade proprietária do lar tem que ser, por inerência estatutária, o Presidente da Câmara; b) o Presidente da ARS do Alentejo foi nomeado pelo governo PSD/CDS e reconduzido pelo atual governo; c) a responsável máxima pela realização do inquérito da Ordem dos Médicos é referida como militante do PSD local. É a democracia a funcionar em pleno.
4. A intervenção do primeiro – ministro
Depois de engolir tantos sapos da Ordem dos Médicos, o primeiro-ministro não aguentou tanta indigestão e, finalmente, ripostou. Têm sido vários, desde o XXI Governo Constitucional, os momentos de tensão entre a Ordem dos Médicos e o Estado. Em vez de adotarem uma postura construtiva e colaborante, os atuais corpos sociais da Ordem dos Médicos assumem frequentemente posições de deselegância e oposição perante o poder político, contrárias, aliás, à colaboração que é mandatória pelos estatutos da própria Ordem dos Médicos. Dá a sensação de que a Ordem está sempre desconfortável com este Governo, receosa, reivindicativa, colada aos sindicatos por tudo e por nada, e criticando com acrimónia qualquer iniciativa do Governo. Mais parece um partido de oposição do que uma associação pública profissional. Não posso, todavia, deixar de louvar o último discurso do bastonário, na sequência do pedido urgente de uma audiência ao primeiro – ministro, aliás, imediatamente concedida. Disse que neste tempo de pandemia, precisamos de estar unidos – Governo e Ordem dos Médicos – para bem do país e dos portugueses. Parecia querer enterrar o machado de guerra e tirar as pinturas com que habitualmente se apresenta. E, como se esperava, a reunião correu bem e as declarações no fim foram cordatas e serenaram os ânimos.
Eis senão quando, o bastonário decide fazer uma carta aos médicos (procedimento habitual quando quer ter a certeza de que a classe está com ele) a revelar pormenores da conversa havida com o primeiro- ministro e dizendo que o que este aí terá dito não coincidiu exatamente com o que disse cá fora. Parece ter faltado um pedido formal de desculpas à classe médica, (como se estivesse toda, por junto, envolvida no caso de Reguengos), claro e em público.
Para além do acinte desta pronúncia, a todos os títulos inacreditável, importa referir que a haver pedidos de desculpas públicas, estes terão também de ser feitos pela Ordem dos Médicos, ao Estado e ao Presidente da ARS do Alentejo, ao Presidente da Câmara de Reguengos, à Direção e aos utentes do lar, aos funcionários e às respetivas famílias, à ANPC e também às Forças Armadas Portuguesas, pela inexplicável demissão de prestação de auxílio que teve lugar por parte dos médicos dos ACES da Região, nos momentos mais dramáticos vividos no lar. Devem, o bastonário e a Ordem, uma explicação aos portugueses sobre tão estranho comportamento, contra a ética e deontologia médicas, e cuja reparação é imperativa, em respeito, pelo menos, pelos mortos de Reguengos.