Se hoje em dia reciclamos papel, plástico e vidro, alguns de nós até pilhas ou mesmo eletrodomésticos, muitos são aqueles que diariamente promovem a transferência de tecnologia e conhecimento entre a academia e a indústria. Fazemo-lo também, mas todos os dias vamos ao espaço e voltamos! Transferimos tecnologia desenvolvida para o espaço, mas para aplicações que nos servem diariamente aqui na Terra, em bens e serviços do nosso quotidiano atual e futuro.
Desde 2000 que Portugal se juntou aos demais estados membros da Agência Espacial Europeia (ESA) e passámos a contribuir para o investimento em desenvolvimento tecnológico para o espaço. Conhecemos melhor o nosso universo, planeamos de forma mais concreta a exploração espacial e o futuro das nossas viagens. Mas, mais do que isso, o investimento em programas tecnológicos e de exploração espacial têm permitido a evolução das nossas vidas 4.0, pois tem assegurado de forma crescente uma infraestrutura que poucos de nós reconhece, o espaço. O acesso resiliente e quase mundial à informação, comunicação e mobilidade é assegurado por tecnologia espacial. No dia em que tomei conhecimento desta relação, toda a admiração quase platónica por astronautas e missões espaciais ganhou uma dimensão mais palpável e concreta. Na verdade, não andam as nações apenas a brincar ao Star Wars, andamos todos a investir no nosso futuro tecnologicamente facilitado.
A transferência de tecnologia acrescenta ainda mais valor a este investimento. Não só a tecnologia, materiais, processos, fármacos, etc., mas também tudo o que viabiliza a operação de um satélite de observação da Terra ou de comunicações é-nos útil no nosso dia-a-dia. Acrescenta valor aos produtos e serviços que conhecemos, potencia novos mercados, facilita a nossa vida e gera valor na economia – pela criação de novos empregos e valorização económica do conhecimento desenvolvido tanto na academia como na indústria do espaço institucional.
Já em 1989 a ESA percebeu esta oportunidade de valorização e, desde então, tem vindo a promover esta cultura de reciclagem tecnológica para benefício dos respetivos estados membros, criando uma rede de brokers de transferência tecnológica – quase como mediadores de tecnologia – e de centros de incubação de startups que usam tecnologia espacial / dados de satélite em contexto terrestre. E Portugal, através do Instituto Pedro Nunes (IPN), tem vindo a contribuir de forma ativa para este up-take tecnológico no sentido espaço-Terra. Identificamos novas utilizações para as tecnologias desenvolvidas para o espaço, encontramos tecnologia espacial que resolve problemas terrestres, apoiamos empresas e investigadores que desenvolveram tecnologia de ponta na Terra, mas que pode ser útil no espaço, e incubamos ideias de negócio que usam tecnologia espacial no centro dos seus produtos e/ou serviços. Assim, como explico aos meus filhos, reciclamos tecnologia do espaço! E são tantos os casos de sucesso na Europa e em Portugal, desde a saúde à segurança, desporto ou energias, passando pelos transportes (do futuro!).
Voltemos a 2005, o ano em surgiu o YouTube. Pense numa viseira de astronauta que lhes permite ver a realidade, mas mais além. Permite-lhes ver a Estação Espacial Internacional e o painel que têm de fixar / operar, mas permite também ver as instruções da tarefa a executar. Realidade aumentada para o espaço, mas em 2005! Tech-intensive para a época que foi concebida e desenvolvida em Portugal. Mais tarde, esta tecnologia espacial portuguesa veio a encontrar o seu caminho de volta à Terra. A reciclagem desta tecnologia teve um impacto não só económico, mas também social. Hoje, doentes com Esclerose Lateral Amiotrófica – uma doença neuro-degenerativa que afeta os músculos voluntários e, como tal, impacta a comunicação – podem comunicar verbalmente de forma eficaz com um par de óculos que fala. São óculos que combinam a “realidade aumentada espacial” com outras tecnologias terrestres e permitem que o doente fale através de um sistema coordenado pelos movimentos da pupila. Este é, sem dúvida, um grande exemplo de como a transferência de tecnologia nos pode tocar a todos, pela criação de uma nova spinoff, novos postos de trabalho, dinamização da economia nacional, mas este em especial pelo impacto humano que tem na nossa sociedade.
Lançar um satélite implica mais do que a sua construção. Antes de o lançar e controlar, é preciso concebê-lo e otimizá-lo para eliminar possíveis falhas e fraquezas antes de o começar a produzir, montar, transportar, lançar, controlar, comunicar e operacionalizar desde a Terra até ao espaço. Mas antes de tudo é preciso simular cada passo da missão, desde a ligação de dois fios, até à transmissão de um comando de arranque sobre um propulsor. Assim, é inequívoca a necessidade de ferramentas computacionais críticas. Foi com base nas competências adquiridas a simular missões da ESA que, em 2014, já se implementava em Portugal um sistema de segurança bancário que deteta fraudes. Transferimos conhecimento do espaço para as transações bancárias, para segurança financeira de todos.
Para os amantes de Marte, quiçá o planeta de escape, ExoMars é uma palavra conhecida. Neste ambicioso programa de estudo do planeta vermelho há também intervenção lusa. O rover que aterrará em Marte em 2020 terá um sistema de locomoção cujo desenho mecânico e estrutural tem intervenção da indústria portuguesa. Contudo, esta tecnologia, que irá permitir no futuro explorar a superfície e subsolo de Marte à procura de vestígios de vida, está já a ser usada na Terra em plantas industriais do setor automóvel. Veículos autoguiados transportam autonomamente toneladas de carga entre linhas de montagem de carros que se conduzem hoje nas nossas estradas. Novamente, o espaço serve a Terra, mas desta vez a transferência de tecnologia foi tão ágil que nos serve hoje, antes ainda de servir os cientistas que irão analisar as amostras do solo de Marte.
Se pensarmos ainda nos exemplos de aplicações que os dados de observação da Terra permitem, teremos um sem fim de casos de sucesso de transferência de tecnologia espaço-Terra. O Programa Copernicus “Europe’s eye on Earth” está a revolucionar a economia e a sociedade. Pensaria a ESA, nos anos 90, aquando da criação dos centros de incubação de startups, poder apoiar empresas em Portugal que, recorrendo a imagens de satélite, conseguem prever a qualidade/poluição do ar, detetar sítios arqueológicos subterrâneos, prever alterações estruturais em estradas e pontes, identificar crimes ambientais, otimizar rotas pesqueiras ou monitorizar mineração subaquática… E até gerir greens de golf, rastrear alimentos, monitorizar zonas de segurança florestal, otimizar a produção de energia em parques eólicos, ou gerir o planeamento urbano, a partir de um computador? É um filão que se abre e as startups portuguesas já recebem prémios internacionais.
Por fim, e com os pés no presente mas os olhos no futuro, celebramos um grande sucesso para a rede de 16 brokers da ESA: a primeira transferência de tecnologia espaço-Terra promovida por dois brokers em coordenação, Portugal (através do IPN) e Áustria a promoverem a aplicação do que mais avançado se desenvolve para o espaço. A herança do espaço transporta-nos ao ainda não referido Galileo. Este programa de navegação por satélite está a superar o GPS, o seu par americano. Esta superação, no que respeita à resolução temporal e geográfica, advém de diversos fatores, um dos quais as estações terrestres que suportam e controlam satélites e estações em órbita. Sinais de georreferenciação de Galileo têm de ser recebidos, igualmente de forma precisa, segura e fiável. Também já há uma empresa portuguesa que desenvolveu tecnologia de ponta para recetores Galileo que estão a ser miniaturizados e adaptados para carros autónomos.
Sendo o espaço um setor da ciência e não da economia, é espantoso o que tem acontecido em Portugal. Novas empresas, novos empregos qualificados, novas aplicações, investimento, mas, sobretudo, retorno! O que seremos capazes de fazer no futuro? O que irá Portugal ganhar quando valorizar ainda mais este setor em crescimento?
Inequivocamente, tenho orgulho em dizer aos meus filhos que o que faço é reciclagem de tecnologia espacial. Inequivocamente que o espaço está a mudar as nossas vidas, a economia e também a sociedade. Inequivocamente, o Instituto Pedro Nunes está a competir com países do centro da Europa com um histórico brilhante no que toca à indústria do espaço. E inequivocamente a transferência de tecnologia não é uma profissão difícil.
Tecnologias no Espaço, negócios em Terra
Transferência de tecnologia, mas que profissão difícil! Aprendi a explicar aos meus filhos o que faço numa linguagem simples e acessível. De forma singela, mas apaixonante, orgulho-me de lhes dizer que “reciclo tecnologia do espaço”.
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