Trinta anos sem Zeca. Quase toda a minha vida. E até por isso me apercebo de que a formulação está errada. Afinal temos estado sempre com ele através da música.
É um dos meus heróis mitológicos, uma figura da infância. Um rosto com grandes óculos nas capas dos discos dos meus pais, a voz familiar que me embalava – dorme meu menino a estrela d’alva e a grande admiração que os adultos faziam questão de ter por ele.
Foi na sua música (e na dos seus discípulos) que conheci a música. Foi na sua música (e na dos seus discípulos) que percebi que a música e a palavra vinham juntas. E que a palavra não é apenas bonita. Tem poder. Foi na sua música (e na dos seus discípulos) que aprendi que a música é também posicionamento (bem antes de conhecer a música-entretenimento). É na sua música (e na dos seus discípulos) que me inspiro para fazer a minha.
Perguntam-me muitas vezes se ainda faz sentido falar de música de intervenção. Respondo que o rótulo pouco importa, mas que a música continua a ser megafone e ferramenta e que, em muitas partes do mundo, isso é providencial. Se pensarmos em Angola, por exemplo, temos em rappers, como MCK e Ikonoklasta, figuras proeminentes da oposição antirregime e das poucas com visibilidade mediática e contacto frequente com organizações internacionais.
Se pensarmos nos EUA e nestas poucas semanas de Trump, percebemos que um verdadeiro batalhão de músicos se tem posicionado contra, através de canções, concertos-comício, boicotes e outras ações políticas. Se pensarmos em Portugal e nos anos duros da austeridade, identificamos um ressurgimento da canção de protesto, pulverizada por vários estilos musicais, com a elevação de alguns temas a “hinos” de uma geração, como o Parva que sou, dos Deolinda. Se pensarmos no Hip Hop, por todo o mundo, vemos o quão importante tem sido enquanto veículo de denúncia do que se passa nas periferias das grandes cidades, especialmente no seio da comunidades negra.
Se a música chega para salvar o mundo? Não. Tal como não nos basta o humor, ou outra forma de expressão qualquer. Mas tem servido sempre para espalhar mensagem, para fazer pensar, para mudar mentalidades, para inspirar, para incitar e para muitas outras coisas que são gatilho para a ação e, portanto, para uma mudança concreta do mundo.
Eu, pelo menos, acredito nisso. Não estou aqui para entreter, nem para ser decorativa, não nasci para ser uma performer, muito menos para fazer parte do problema. Acredito que, com o microfone vem a responsabilidade e escolho ter consciência disso. Acredito que, mesmo o mais anticético dos artistas, acaba sempre por posicionar-se (nem que seja pela omissão) e eu prefiro fazê-lo declaradamente. (E atenção:) acredito que a criação é liberdade, antes de tudo e, portanto, não quero vender a ideia de que esta é a forma “correta” ou “válida” de fazer música. Pelo contrário. Mas com Zeca (e seus discípulos), e mais tarde com o Hip Hop (que cultiva o mesmo compromisso), aprendi que tudo isto tem muito mais força se tiver impacto no mundo.
Há uns anos, numa conferência, ouvi Zé Mário Branco (outro dos meus heróis mitológicos) dizer que há três grandes pilares para a criação artística: a Estética e essa eterna busca filosófica pelo belo, a Técnica, enquanto ofício em permanente evolução, e finalmente a Ética, que dá sentido a tudo. E eu comungo desta visão, aplicando-a, não como um espartilho “careta” e moralista, mas enquanto postura, enquanto forma de estar na música, enquanto retribuição.
Essa que me leva a imprimir nas letras o que me preocupa, a aproveitar o tempo de antena mediático para falar de causas que me são importantes, a escrever crónicas, a aceitar convites para debates em escolas e universidades, a participar em projetos sociais e a fazer parte de uma poderosa cadeia de bons contágios, composta por todos aqueles que fazem questão de inspirar pelo exemplo. Como Zeca nos ensinou.
(Artigo publicado na VISÃO 1252 de 2 de março de 2017)