Choveu muito ontem à noite. E enquanto adormecia a ouvir a chuva, sentia-me em paz ao mesmo tempo que pela minha imaginação passavam os sons da natureza que nos serenam; o mar, a chuva, um rio. Adormeci profundamente. Hoje, pouco tempo depois de acordar, vi nas notícias as imagens de uma criança a ser resgatada dos escombros de um prédio destruído em Alepo. Gritava: “deem-me água!” enquanto os capacetes brancos tentavam desprender-lhe a perna dos destroços. Estamos tão longe de tudo… Gritava “vem comigo” quando o pai a carregava para a ambulância com a cara cheia de sangue. Estamos muito longe deste mundo “distópico”, deste pesadelo dantesco, deste sofrer absurdo, que tudo nos passa pelos olhos como um filme. O filme para, e nós continuamos aqui. O filme para e esquecemo-nos que eles continuam lá. Nesta altura começamos instintivamente a ter tendência para mudar de canal. Quando as mesmas notícias trágicas se estendem por demasiado tempo, queremos outras novas, porque não queremos mais o peso dessa realidade nas nossas frágeis costas. Queremos descansar os ossos porque já sabemos que existe gente a sofrer por todo o mundo, já sabemos que existe gente a morrer todos os dias em guerras que sabemos que existem e em guerras que já nem são notícia para a imprensa. Já sabemos que há mulheres espancadas todos os dias e que há raças e religiões e géneros e feitios discriminados pelo mundo inteiro. Já não queremos saber quantos milhares de refugiados chegam aos campos por dia, já não queremos saber quantos morrem num barco perdido num mar que não é o nosso ou quantas mulheres não podem ser humanas numa casa que não é a nossa ou quantas crianças que não conhecemos não têm direito ao mínimo de condições num mundo brutalmente desequilibrado. Não queremos ver a imagem da miséria ao lado do nosso novo Iphone7. Queremos virar a cara porque todo o nosso ser está cansado e nos pede para pensarmos noutra coisa, ou mais em nós, como se depois de tantos anos adormecidos e hipnotizados e paralisados pelo egoísmo do “capitalist-way-of-life” que nos impingem todos os dias e a todas a horas, a nossa alma se tenha esquecido do que é capaz quando a decisão é a de desistir, de ignorar. Estou a falar da forma como mudamos quando a direção da escolha é para fora de nós. Estou a falar de olhar com atenção. Estou a falar de nos calarmos todos, em vez de nos sentirmos validados com discursos em caixas de comentários perdidos na Web. Estou a falar de acordarmos deste sono em vez de procurar respostas espirituais ou políticas ou morais em frases de “Instagram” com fundos em “dégradé” que reencaminhamos infinitamente… “happiness is wholeness” (acabei de inventar). Estou a falar de procurar as respostas no sítio onde estão os problemas. De viver essas respostas. De perceber que outras vidas são estas que nos incomodam tanto, mesmo depois de mudarmos de canal.
Este fim de semana, estive numa conferência sobre direitos humanos, e no painel era óbvia a diferença entre quem agia e quem apenas falava. A diferença em termos de sobriedade, discernimento, postura, entre quem viveu, e quem apenas pensou muito sobre o que os outros vivem. Eu escrevo, canto, e sei que também através das palavras certas posso mudar consciências, como aliás tantas palavras ou canções já me mudaram a mim. Mas para essas palavras chegarem de verdade ao seu destino, não podem ser só teoria, não podem ser só minhas, têm que ser reais, objetivas, concretas, vividas! O mundo está a mudar à frente dos nossos olhos e se pensarmos bem, a tendência para o extremismo político não é só reação ao extremismo religioso. É muito mais que isso, muito mais profundo, muito mais complexo, muito mais perto de cada um de nós, todos os dias. O mundo está a mudar, e se não sabemos sair das nossas vidas, quem somos nós para mudar de canal?