Ontem mandei uma mensagem ao Howard, produtor com quem gravei dois álbuns em Montreal. “Our Leonard has gone to a better place”, escrevi. Hoje de manhã tinha a resposta: “Sadly…”, seguido de um link para uma entrevista, onde o Howard falava para uma rádio sobre a sua ligação ao Leonard Cohen. Eu tinha prometido a mim mesmo que não ia escrever sobre a “morte de Leonard Cohen”, embora poucos artistas sejam, a par de Bowie, Dylan, e Tom Waits, tão importantes para mim desde os meus princípios neste ofício. Isto porque, desde que se soube do seu desaparecimento, já li tantos posts, crónicas e homenagens, vi tanta gente a tratá-lo por tu como quem partilha qualquer coisa de pessoal com alguém espiritualmente presente, mas que por acaso partilha também com o mundo inteiro ciberneticamente presente, que a certa altura fico saturado e afastado de tudo o que Leonard Cohen representava e representa para mim. Eu sei que todos temos a nossa maneira de reagir aos acontecimentos mundiais ou artísticos, mas há que dizer também que, nesta era de partilha constante, o ego do homenageador passa demasiadas vezes à frente da própria homenagem e tudo isto se torna num combate feroz para ver quem mais referências obscuras ou jogos de palavras relacionadas com letras do artista consegue injetar na sua (muitas vezes demasiadamente) sentida homenagem. Enfim, cheio destas minhas infundadas inquietações, hoje de manhã carreguei no link que o Howard me mandou e passei 20 minutos a andar pela terra molhada a respirar o ar puro em volta da casa onde vim passar o fim de semana, em Melides, e a relembrar as conversas tão cheias de mistério que tive com Howard sobre este personagem, de quem no fundo pouco sabíamos ao certo. Leonard Cohen era de Montreal, e quando digo “era” não me refiro apenas à casa onde ele por vezes vivia.
Refiro-me ao sentimento de posse que se sente na comunidade artística de Montreal. Senti isto de maneira muito carinhosa quando cheguei a primeira vez à cidade. Leonard Cohen é deles, e, embora muito poucos se tenham sequer cruzado com ele, a hipótese dessa possibilidade pairava constantemente pelas ruas em volta de Marie-Anne Street, onde ele morava. O meu apartamento fazia esquina com essa rua, e mesmo que o caminho para o estúdio não fosse necessariamente por ali, todos os dias eu fazia questão de passar em frente àquela casa, relativamente modesta, na ânsia de ver uma porta abrir, ou uma cortina mexer. O Howard falava dele com o fascínio infantil do fã que passou uma vida a preparar tudo para a chegada do seu ídolo. Com uma mistura de orgulho e dor contava a história do dia em que Leonard Cohen tinha finalmente ido visitar o seu estúdio “Hotel2tango”, mas exatamente quando o Howard não estava lá! O que me renovou hoje de manhã ao ouvir esta entrevista foi relembrar a pureza e humildade na forma como o Howard olhava para o seu conterrâneo, para o seu vizinho, sem uma única vez ter sequer insinuado que sabia mais dele do que o mundo inteiro, mesmo depois de finalmente o conhecer. E no meio deste festival de lamento cibernético percebi que isso sim é o verdadeiro legado do trabalho que Leonard Cohen nos deixou. O mistério, a simplicidade, e o silêncio eterno dos espaços entre as suas palavras.
A nossa ansiosa espera para saber de que maneira elas se vão ligar e entrelaçar-se por dentro de nós. A distância da pessoa em si.
A consciência de que a porta nunca vai abrir, a cortina nunca vai mexer, e todos nós ao mesmo nível a olhar para a casa misteriosa que era Leonard Cohen e, tão serenamente como a sua voz funda, respeitar a distância, a sua vida, e a sua morte, mas ouvindo-o, de perto, como ele sempre nos cantou.