Na sequência de um alegado “surto psicótico” de um recém-graduado em Medicina, muito se tem falado sobre a Prova Nacional de Seriação (PNS) do internato médico, “Harrison” na gíria estudantil, e a pressão que causa nos candidatos. Embora não se deva estabelecer uma relação causal direta entre este caso específico e o stress e ansiedade causado pela realização da PNS (um surto psicótico é uma entidade multifatorial e, dificilmente, causado por um exame apenas), a verdade é que em nada me surpreende a associação que rapidamente alguém fez.
Estudar para o Harrison é, certamente, um dos piores momentos da vida de um futuro médico. Habituados desde o primeiro ano a ouvir falar dele, o Harrison é o exame que nos seria no momento da escolha da especialidade. Assim, um ano antes, timidamente começamos a pegar nos cinco enormes volumes de letras minúsculas, enquanto conciliamos com o estágio e a tese de final de curso. À medida que os últimos meses se aproximam a situação agrava-se, e em muitos casos o dia inteiro irá resumir-se a estudar.
Aqueles que nos rodeiam dificilmente entendem o que estamos a fazer. Faz algum sentido alguém dedicar um ano da sua vida a decorar um livro? Do ponto de vista da construção de um médico, não. Mas não me interpretem mal, o problema não está no número de páginas a estudar. Está sim no detalhe com que nos é exigido que as saibamos, nas diversas perguntas sobre pequeníssimos pormenores no meio de enormes parágrafos e também pelo facto do resultado desta prova desadequada definir se entramos, ou não, na especialidade para a qual nos sentimos vocacionados.
Há uns dias ouvia alguém no comboio comentar que “Medicina não é um curso assim tão difícil, afinal é só decorar”. Não pode haver perspetiva mais distanciada da realidade. A subtileza de conseguir identificar e relacionar os sintomas corretos, optar por um diagnóstico, decidir se se deve ou não tratar, optar pelo melhor tratamento (tendo em consideração todas as comorbilidades, pois afinal um diabético é diferente de um diabético hipertenso que é diferente de um diabético hipertenso e insuficiente renal) e adotar uma postura humana na relação médico-doente, fazem com que a complexidade da prática médica vá muito para além da capacidade de memorizar.
É pois urgente que, respeitando os prazos de implementação de uma nova prova, se mude o exame. Urge que se avalie verdadeiramente o raciocínio clínico. Urge que todas as partes cheguem a um acordo, e que a Tutela suporte a mudança.
O período de estudo para a PNS irá sempre revestir-se de stress, sim, mas faça-se pelo menos com que valha um pouco mais a pena. Façam-nos sentir que estar no hospital contribui para a nossa aprendizagem.
E, já agora, aumente-se o nível de alerta nas Faculdades para situações de exaustão emocional e criem-se, ou divulguem-se, estruturas de apoio. Afinal, frequentemente os médicos dão os piores doentes.