Apesar de toda a polémica, de todas as ameaças, da intervenção policial na altura do lançamento do livro; não obstante o barulho que as redes sociais fizeram, e as redes sociais fazem cada vez mais barulho, “Alentejo prometido”, último livro de Henrique Raposo, publicado com a chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos, é apenas… um livro sobre o Alentejo.
É um livro pessoal, de observações próprias e memórias intransmissíveis, feito por um flibusteiro que escreve no Expresso e é investigador em Ciências Sociais. Nada do que ali está pretende, no entanto, erigir-se em tese e, no entanto, muito do que ali está é compreendido – mas talvez não expresso preto no branco – por quase toda a gente. Por exemplo: as pessoas, nomeadamente, os homens, no Alentejo quando à conversa, não se tocam. “Estar ao pé de um homem do Norte é estar sempre a levar com braços cotovelos, encontrões, abraços, pontapés”. Descontando o exagero, isto é verdade. Mas no Alentejo todos são desconfiados. Podemos perguntar todos? Claro que todos é também uma força de expressão, mas a desconfiança no Alentejo e na Serra Algarvia é, deveras superior ao que se passa nas terras a Norte do Tejo.
Quando Henrique Raposo deu uma entrevista a Pedro Boucherie Mendes, na SIC Radical, a propósito do seu livro, gerou-se um movimento de indignação. Pessoas queimaram o livro, jurou-se pela pele do Raposo. Porquê? Não sei! O livro é um hino de amor pela região, na medida em que apenas podemos reconhecer os defeitos profundos daqueles que são os nossos. Não é dizer que no Alentejo existe a maior taxa de suicídio do país (coisa que irritou os indignados); isso toda a gente sabe. Mas desafio quem saiba por que motivo tão pouco se fala de malária onde ela só foi erradicada nos anos 50 e, até lá, provocou (as ‘sezões’ como se dizia) um rol de doentes e sofrimento que merecia um estudo. Ou quem escreva candidamente estas linhas sobre o próprio avô que batia nos filhos por dá cá aquela palha: “Não encaro essa violência como um ato consciente de um homem dotado de livre arbítrio, vejo apenas o desespero de um ser humano reduzido à condição animal, esfomeado e derreado pela fadiga”. Ou onde se fala do “orgulho analfabeto” dos homens e das violações das mulheres como fosse consequência do destino. Isto, bem entendido, nos anos 50 e mais recuados.
Talvez exista uma explicação para a indignação anti-Raposo. Ela chama-se espelho: por vezes olhamos e não gostamos do que vimos. Do Alentejo iliberal que deu as guerrilhas contra a modernidade; de uma terra sem lei que o realizador João Canijo retratou para a TV; de uma miséria extrema.
Talvez haja quem prefira esta sujidade passada debaixo do tapete do tempo. A meu ver, Henrique Raposo fez bem em desvendá-la. Se com exagero a mais ou a menos, não posso dizê-lo. Nunca fui alentejano nem vou a tempo de o ser.