Haver mais de 1 400 000 portugueses que, no mínimo, não se importam que as duas principais figuras do partido em que votam ponham uma espécie de estrela amarela em crianças é muito perturbante, mas não é propriamente uma novidade. Ventura e companhia continuarão a escavar cada vez mais fundo e os mui compreensivos analistas permanecerão com a ladainha do “ah e tal, não podemos dizer que os apoiantes do Chega são todos xenófobos”. Lamento, quem secundariza valores essenciais de Humanidade e decência, sobretudo quando falamos de crianças, deixa bem claro as suas convicções.
O que, apesar de tudo, surpreende é como um partido como o PSD se deixou contaminar pelas direitas não democráticas e se transformou no ponta de lança das suas ideias mais emblemáticas.
Para o Governo, o maior problema português é a imigração. As suas primeiras iniciativas legislativas são as que dizem respeito a este tema e à nacionalidade. Mais, o assunto mereceu um conselho de ministros extraordinário, o primeiro. Há umas questõezitas com a saúde, a habitação, a instabilidade internacional, os salários, a violência doméstica, mas a imigração é que é um problema.
Aparentemente, os imigrantes fizeram surgir uma vaga de criminalidade, causaram desemprego, aprofundaram a crise demográfica, provocaram a crise da habitação, estão a tornar a Segurança Social deficitária e a economia colapsa por causa dessa gente que está a invadir Portugal.
Claro está que nada disto é verdade. Sem os imigrantes a nossa economia não teria crescido de forma notável como cresceu, nem teríamos tido pela primeira vez um saldo populacional positivo. É graças aos imigrantes que a Segurança Social está muito excedentária e não são obviamente eles a tirar emprego a ninguém, pois vivemos praticamente em pleno emprego. Por outro lado, não são eles os responsáveis pelo desastre que têm sido as políticas de habitação nas últimas décadas – aqui e em todo o mundo ocidental, diga-se –, nem pelo baixo investimento na escola pública, nem há um único indício de crescimento do crime associado aos homens e mulheres que vieram para cá.
Já aqui o escrevi muitas vezes: receber em tão curto espaço de tempo tantas pessoas, tendo parte dessa gente hábitos, cores e cheiros diferentes dos nossos, apresenta desafios importantes. Convém, porém, lembrar que eles vieram porque precisávamos e precisamos deles.
Não há imigrantes a mais num País que necessita deles para funcionar; não há imigrantes a mais num País que não tem praticamente desemprego; não há imigrantes a mais num País em que a economia colapsaria se se fossem embora. Invoco o insuspeito Álvaro Santos Pereira que disse que precisamos de muitos mais imigrantes se queremos que a nossa economia continue a crescer. Lamento, precisamos de mais imigrantes e não de limitar a entrada ou correr com os que cá trabalham.
O partido que ganhou duas eleições dizendo que não ia fazer alianças com o Chega, não só as faz nos piores temas possíveis como tenta ser o protagonista delas
São assim fundamentais políticas que integrem, que ajudem as pessoas vindas de outras culturas e com outros modos de vida a sentirem-se parte da nossa comunidade. É necessário que se incentive a aprendizagem da língua (apesar de que a esmagadora maioria já a domine), é básico que se ajude as famílias a reunificarem-se – ninguém se integra quando tem a família longe –, é importante que se ensine os princípios básicos da cidadania. É, mais do que tudo, essencial que as escolas recebam e estejam preparadas, nas várias dimensões, para os filhos dos imigrantes: não há maior móbil para a integração do que ter os filhos confortáveis num novo país – basta perguntar aos nossos irmãos emigrantes.
O Governo, o PSD, não acha nada disto. Prefere andar com a conversa mentirosa das “portas escancaradas”, do aldrabão – e contra todos os factos – discurso da imigração a mais e insiste em medidas copiadas ou que podiam ser do Chega e até vai ao extremo de trazer a lei da nacionalidade para debate, não hesitando em propor coisas tão vergonhosas como passar a haver portugueses de primeira e de segunda – os que não podem perder a nacionalidade e os que podem.
Já não vale a pena esperar do PSD nada que não seja um acompanhamento das bandeiras do Chega. Aonde vão as linhas vermelhas, aonde vai o “não é não”? O eleitor está esclarecido: quando vota no PSD, está a escolher políticas xenófobas, tolerância com atitudes como as da semana passada e alianças com o Chega. É esta a social-democracia do PSD.
O que conta para a vida de uma comunidade são as políticas, não é o jogo político. Se estes dois partidos se entendem às mil maravilhas em temas essenciais como o respeito (ou falta dele) pelos direitos humanos, o tratamento das pessoas que vêm ajudar-nos ou a transformação da nacionalidade em algo relativo, há um que está a mais. Normalmente, prevalece o original.
Era exatamente para temas como imigração, nacionalidade, direitos fundamentais, garantias de defesa, que havia linhas intransponíveis. Foram mesmo essas que foram transpostas.
Se o PSD acha normal sentar-se com um partido que recita nomes para criar um clima de ódio sobre crianças, levando as pessoas a crer que aqueles miúdos estão a mais é porque perdeu toda a decência.
“Olha, hoje vou pôr a Rita Matias a debitar nomes de uma escola do pré-escolar do Porto, finge que não ouviste, Luís”, poderá Ventura dizer no meio de uma negociação. Alguém podia surpreender-se com isto? Claro que não.
O PSD e o Governo estão a contribuir de forma muito relevante para o clima de ódio que existe em relação aos imigrantes. Mais, serão corresponsáveis por tudo o que vier a passar-se de bullying e violência.
Houve um tempo, não muito longínquo, em que os partidos eram uma espécie de diques, protegendo contra sentimentos negativos e primários das populações. De uma forma muito simples: sempre houve racismo e xenofobia, muito mais, aliás, do que se dizia na praça pública. Os partidos, porém, conseguiam enquadrar essas pessoas, limitar a sua ação, refrear a sua capacidade de atuar. Os partidos tinham essas pessoas e representavam essas pessoas, mas não davam vazão a essas vontades. O dique rebentou.
O PSD começou por cima. É a liderança do antigo partido social-democrata que não hesita em assumir o discurso xenófobo e anti-imigração. O partido que ganhou duas eleições dizendo que não ia fazer alianças com o Chega não só as faz nos piores temas possíveis como tenta ser o protagonista delas.
O PSD é isto, melhor, converteu-se nisto. O que foi já não é um património que o enforma, é uma herança que repudia. Não vale a pena perguntar pelo antigo PSD e por aquilo que foi. Houvesse coragem e dignidade e a atual liderança proporia a mudança de nome e estatutos.
Os seus princípios e valores já lá não estão e não regressam. Está morto e enterrado.