Na escola onde vivo hoje, em Aveiro, o tempo às vezes dobra-se sobre si próprio. Foi o que aconteceu, há tempos, em que li, em voz alta, uma frase que criei para exemplificar o modo imperativo, que poderia ter saído da pena de Eugénio de Andrade – e talvez por isso mesmo soe tão verdadeira: Dá-me a tua boca, dá-me o teu pão, / dá-me o azeite sobre a pele do trigo.
Um silêncio leve caiu sobre os meus pupilos. Depois, Youssef – jovem de Marrocos, olhos cor de terra seca – ergueu a cabeça e disse, quase em sussurro:
– Professor… em árabe, azeite é ez-zīt. É quase a mesma coisa.
E era assim, o ensino da descoberta do português, no Liceu Sadiki, em Tunes – sob tetos altos que guardavam o eco de Ibn Khaldun e de Habib Bourguiba. Também ali, em salas onde o mármore parecia respirar História, um aluno me perguntara, com o mesmo espanto:
– Como é possível que o vosso “azeite” soe como o nosso zīt?
Hoje, nesta terra banhada pela ria, a pergunta repete-se – mas com o sotaque de quem descobre que a língua não o exclui, antes o reconhece. E nesse reconhecimento reside o mais simples e mais urgente dos ensinamentos: somos todos feitos da mesma matéria humana, apenas expressa em ritmos e tonalidades diferentes.
Não por acaso, o português diz azeite, azeitona, alface, alfarrobeira, almofada – palavras que brotaram do mesmo solo onde floresceram os jardins do Liceu Sadiki e as aulas do Instituto Superior de Línguas de Tunes, onde ensinei a língua e a cultura portuguesas a futuras tradutoras, diplomatas, sonhadoras. Nessas salas, onde o árabe clássico dialogava com Camões e Saramago, eu via os meus alunos tunisinos a iluminarem-se ao descobrir que “azulejo” vinha de zulayj – “pedrinha polida” –, a mesma palavra que nomeia os mosaicos da Mesquita Zitouna (Oliveira) e os azulejos do Palácio Nacional de Queluz.
Mais tarde, Fatima – de Gabès, neta de agricultores que colhiam azeitonas sob o mesmo sol que queima as colinas do Alentejo – perguntou-me:
– Então, quando eu falo português… estou a falar também um bocadinho de árabe?
Sorri. E disse-lhe que sim. Que fala árabe sempre que diz “azulejo”, que fala árabe quando chama o mar de “almirante” (amīr al-baḥr, “comandante do mar”), que fala árabe quando se deita sobre uma almofada (al-mikhadda), quando cheira o almíscar (al-misk) num frasco de perfume antigo.
Ela ficou calada. Depois, disse:
— Então o português não é só deles. É também nosso.
Não corrigi o “eles” e “nós”. Porque, naquele momento, ela já tinha apagado a fronteira – tal como eu próprio fizera, anos antes, ao caminhar pelos corredores do Sadiki, onde a bandeira tunisina esvoaçava ao lado de um retrato de Al-Battani, o astrónomo árabe cujo nome ainda sobrevive na palavra “algarismo”.
Essa descoberta – de que as línguas partilham raízes, histórias, até afetos – não é apenas linguística. É profundamente humana. Porque quando um jovem imigrante percebe que a língua do país onde agora vive já guardava, em segredo, algo da sua origem, deixa de se sentir um estrangeiro. Passa a sentir-se um filho que regressou sem nunca ter partido.
Há uma beleza quase sagrada nesta herança. Não é a do império que conquista, mas a do encontro que transforma. Enquanto em Tunes se erguia a Grande Mesquita no século IX, em Beja nasciam vilas com nomes como Alcácer do Sal (al-qaṣr, “o castelo”). Enquanto os estudantes do Sadiki aprendiam francês, árabe e, mais tarde, comigo, o português, os jovens de Coimbra analisavam textos onde já se lia “alquimia”, “álcool”, “alface” – palavras que seriam usadas por Sophia de Mello Breyner para descrever a luz que entra no mar ou por David Mourão Ferreira para cantar o desejo com ternura e fogo.
E hoje, nas escolas portuguesas, são os filhos do Magrebe que, ao aprenderem a escrever “azeitona”, reencontram a língua dos avós sem sequer terem saído de casa. E nesse reencontro, não há apenas identidade – há humanidade. Porque percebem, com o corpo e não só com a mente, que as distâncias entre os povos são, muitas vezes, ilusões fabricadas por quem teme o outro.
Lembro-me de uma tarde no Instituto Superior de Línguas de Tunes. Depois de uma aula sobre um poema de Fernando Pessoa, uma aluna levantou a mão e disse:
– Professor, “navegar é preciso” soa como um verso do Alcorão… não pela fé, mas pela coragem de partir. E eu quero ir ver o mundo.
Respondi-lhe que talvez por isso mesmo o Mediterrâneo nunca tenha sido um muro, mas um livro aberto entre duas margens – escrito em muitas línguas, mas com a mesma alma.
Por isso, quando ensinava português a jovens tunisinos, marroquinos, argelinos, não lhes dava uma língua estranha. Devolvia-lhes fragmentos da sua própria memória, disfarçados de português. E eles, com a sabedoria dos que vêm de terras onde as línguas se cruzam como rios, sorriam – porque reconheciam a casa.
Youssef, hoje, certamente até escreve crónicas em português. Usa “almofada”, “alface”, “azeite” com a naturalidade de quem herdou um jardim. E eu, ao lê-las, lembro-me do pátio do Sadiki quente do entardecer, onde o som do adhān se misturava com o tilintar dos copos de chá quente de hortelã com pinhões – e onde, sem saber, eu já preparava este encontro.
Porque o sol que doira a azeitona em Nabeul é o mesmo que amadurece o fruto em Trás-os-Montes. E a língua, quando é generosa, é capaz de dizer, em dois continentes, a mesma luz. Não para apagar as diferenças – mas para mostrar que, por baixo delas, pulsamos com o mesmo coração.
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