Há momentos na História em que o passado regressa quase sem pedir licença. Em 1982, Ronald Reagan apareceu diante da América com Nancy ao seu lado numa espécie de sermão civilizacional sobre o perigo da droga. A retórica era moral, emocional e patriótica. Mas por detrás daquela encenação havia uma estratégia mais larga. No ano seguinte, o Congresso aprovou legislação que permitia ao Presidente autorizar ações militares sempre que o narcotráfico fosse considerado ameaça à segurança dos Estados Unidos da América. A partir desse instante, qualquer crise na América Central ou na América do Sul podia ser reinterpretada como parte da guerra contra as drogas. Foi uma porta discreta para justificar intervenções em regimes incómodos como Panamá e Nicarágua, uma ferramenta que as administrações seguintes nunca deixaram totalmente adormecida.
40 anos depois, Donald Trump recupera esse argumento quase com a mesma naturalidade com que repete frases dos anos oitenta. A diferença é que, agora, o contexto é mais denso. Tal como Clinton procurou refúgio externo quando a crise Lewinsky ameaçava o seu capital político e Obama olhou para fora quando a política interna se tornava exasperante, também Trump percebe que a política externa pode oferecer um palco mais seguro do que o interior.A referência à droga é útil, simples, direta e emocional. Mas a Venezuela de hoje é muito mais do que um país associado ao narcotráfico. É um ponto geoestratégico sensível, é um vizinho próximo e é um dos países que mais abertamente se alinharam com Moscovo e com Pequim.
Caracas fica a pouco mais de duas horas e meia de Miami. É o país do Sul Global mais próximo da costa americana e, ao mesmo tempo, aquele que mais abertamente desafiou Washington. Nos últimos anos, e muito recentemente, o regime de Nicolás Maduro recebeu apoio militar da Rússia, incluindo sistemas de mísseis que alteram a equação estratégica da região. Para Trump, que constrói a sua visão do mundo a partir de relações de força e proximidade, a ideia de ter uma plataforma hostil tão perto do território americano é simplesmente intolerável. Não se trata de ideologia nem de retórica sobre socialismo, trata-se de geografia e de poder.
A isto soma-se a dimensão energética. A Venezuela continua a deter algumas das maiores reservas de petróleo do planeta e um dos maiores depósitos de gás natural. Num momento em que os Estados Unidos procuram controlar os fluxos energéticos e limitar a influência russa e chinesa nos mercados globais, deixar esta riqueza nas mãos de um aliado de Moscovo é um risco real. A narrativa antidroga serve como argumento, mas por detrás dela existe a lógica crua da competição entre grandes potências.
Apesar de toda a retórica, Trump sabe que não lhe interessa uma intervenção militar clássica. O que pretende é algo mais subtil e mais eficaz. Quer desgastar Maduro a partir de dentro, quer provocar fissuras na estrutura do regime, quer criar condições para uma mudança impulsionada pelo próprio país. Fala da oposição, recorda que as últimas eleições foram amplamente contestadas, refere a vitória moral de María Corina Machado, recentemente distinguida com um Nobel que expôs a fragilidade democrática do regime. Mas Trump conhece bem a realidade venezuelana. Sabe que nada muda sem que os militares mudem.
E aqui está o coração do problema. Desde Chávez até Maduro, as Forças Armadas foram transformadas numa elite protegida. Enquanto o povo enfrentou fome, pobreza extrema, falta de medicamentos, hospitais sem meios e uma inflação absolutamente delirante, os militares receberam privilégios, acesso a divisas, controlo sobre setores económicos e autoridade sobre vastas áreas do Estado. A miséria nunca chegou aos quartéis e é por isso que a lealdade continua intacta. A Venezuela tornou-se um regime pobre com uma elite armada rica. E é esta elite que impede qualquer transformação interna.
O que Trump está a tentar fazer é simples de explicar e complexo de executar. Quer pressionar de fora para fragilizar por dentro. Quer usar a economia, a diplomacia pressionada, a narrativa pública e até a ameaça implícita de força para isolar Maduro sem disparar um único tiro. Na prática, tenta transformar a Venezuela num laboratório onde se cruzam três disputas globais. A disputa entre EUA e Rússia, a disputa entre EUA e China e a disputa entre democracia e autoritarismo.
A verdade é que o discurso antidroga voltou a ser o pretexto perfeito. O que está realmente em jogo é o mapa do poder no século XXI. A Venezuela tornou-se o palco mais próximo, mais frágil e mais simbólico desta luta. E enquanto os militares continuarem a ser a muralha do regime, Trump continuará a procurar fissuras. Sabe que o tempo é uma arma. E acredita que a Venezuela acabará por não resistir a ele.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.