Barnahus é uma palavra ainda estranha para nós, mas que há muito tem viajado pelos sistemas de proteção das crianças na Europa. Em português significa “casa das crianças” e dá significado a um modelo criado em 1998 na Islândia e que tem sido internacionalmente reconhecido como uma boa prática de intervenção multidisciplinar e adaptativa. Proporciona às crianças e aos jovens vítimas ou testemunhas de violência uma resposta abrangente e coordenada, em ambiente seguro, prevenindo a (re)traumatização nos procedimentos judiciais e possibilitando a obtenção de um meio de prova válido, aumentando as percentagens de condenações.
O modelo consiste em reunir todos os serviços importantes numa casa, ou num espaço físico, que garanta um atendimento multissetorial da criança ou da vítima: acompanhamento médico e/ou psicológico, assistência por técnico de apoio à vítima e, finalmente, a sua audição, para prova no(s) processo(s).
Este modelo foi inicialmente criado para os crimes de abuso sexual de menores, tendo resultado na duplicação do número de condenações na Islândia por esse crime. O seu sucesso levou a que o modelo fosse progressivamente implementado um pouco por toda a Europa.
Mas os bons resultados do modelo permitiram também que fosse aplicado quando estejam em causa outros tipos de crime com violência, seja física, psicológica e/ou emocional: violência doméstica, mutilação genital, tráfico de pessoas, ciberbullying, etc. E também que tenha sido alargado a vítimas adultas, quando o impacto da violência exija uma resposta eficaz e adaptada.
Portugal é, infelizmente, um dos poucos países que ainda não acolheram este modelo no seu sistema, sem prejuízo de, em 2021, ter lançado (com a iniciativa 4children) as bases para a sua adaptação – que está há dois anos prevista em resoluções do Conselho de Ministros ou na Estratégia Nacional para os Direitos das Vítimas de Crime 2024-2028, que preconiza a adaptação deste modelo à realidade portuguesa e a criação de um projeto-piloto.
A sua implementação é uma urgência nacional, mas o Governo Regional da Madeira iniciou recentemente os trabalhos para a sua introdução no arquipélago. Por outro lado, em algumas comarcas, como Porto ou Faro, já se experimentou um modelo próximo do Barnahus na audição de crianças, por um técnico. Não obstante esta solução estar próxima das orientações e dos princípios internacionais em matéria de justiça child-friendly e adaptações processuais, muitas dúvidas têm sido colocadas quanto à sua legalidade, levando a impugnações das diligências e à sua subsequente repetição.
Desta forma, afigura-se essencial, para a concretização do modelo Barnahus, proceder às necessárias alterações legislativas, desde logo quanto ao regime das declarações para memória futura, de modo a permitir a tomada de declarações num local fora do Tribunal (mas, sim, na referida casa das crianças), com a intervenção ativa de um técnico especializado e a aplicação das adaptações processuais necessárias.
Idealmente, as perguntas serão colocadas pelo técnico, que terá comunicação (por auricular) com os intervenientes processuais – juiz, procurador, advogados –, permitindo uma inquirição ajustada às circunstâncias pessoais da vítima. As declarações serão registadas em suporte áudio e vídeo, podendo ser usadas como meio de prova tanto no processo-crime, como também no processo de promoção e proteção e na regulação das responsabilidades parentais, nos quais são tomadas decisões quanto ao menor.
A alteração do regime das declarações para memória futura, ao abrigo do modelo islandês, permitirá uma maior credibilidade do testemunho e, consequentemente, da valoração desse meio de prova em julgamento, aumentando a probabilidade de condenação do agressor. Deverá, por outro lado, ser estendido o seu âmbito a outras vítimas, como adultos (em crimes violentos) e pessoas especialmente vulneráveis ou fragilizadas (sobretudo vítimas de violência doméstica, idosos e pessoas com deficiência).
Diz o ditado popular que mais vale tarde do que nunca. Esperemos, pois, que o Governo avance rapidamente com a implementação do modelo Barnahus. Quase 30 anos depois, ainda vem muito a tempo de melhorar o nosso sistema de proteção das vítimas e das crianças, em especial.
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