A recente apresentação pelo Governo do “Anteprojeto de Lei da reforma da legislação laboral” (Anteprojeto) tem vindo a motivar um coro de reações, de aplauso ou de condenação, consoante o posicionamento ideológico de quem sobre o tema se manifesta. Ciente da dificuldade em que me coloca uma análise desprovida de preconceitos de natureza política, focada exclusivamente nas aplicações práticas das alterações propostas, tentarei ainda assim fazê-lo nas próximas linhas. Pela sua importância estruturante no ordenamento das relações de trabalho, concentrar-me-ei nas matérias respeitantes à cessação do contrato de trabalho e à das garantias retributivas do trabalhador.
Partamos então de uma primeira afirmação veiculada por diversos intervenientes no espaço mediático, a de que, com a alegada permissão “generalizada” da recusa da reintegração em caso de despedimento ilícito, ficam “facilitados” os despedimentos, ou aberta a porta a que as empresas, “livremente”, possam ver-se livres de trabalhadores “incómodos”, desde que “paguem” por isso. Tal leitura não só não resiste à análise literal da nova regra proposta sobre a matéria como não toma em consideração as demais consequências aplicáveis ao despedimento ilícito.
Desde logo, importa esclarecer que a regra da recusa da reintegração já existe desde o Código do Trabalho de 2003. O que é novo, agora, é que deixa de estar limitada às microempresas (com menos de dez trabalhadores) e a cargos de administração ou direção. Significa isto que, a ir por diante esta alteração, todo e qualquer empregador, se o requerer ao tribunal, pode recusar readmitir um trabalhador em caso de despedimento ilícito? Longe disso, uma vez que na nova formulação a recusa da reintegração continuará a depender da alegação e prova, em fazer nos autos onde se aprecie a licitude do despedimento, de “factos e circunstâncias que tornem o regresso do trabalhador gravemente prejudicial e perturbador do funcionamento da empresa” – o que não tem sido, e não se antevê que venha a ser, uma evidência fácil de produzir nos tribunais de trabalho portugueses.
A dedução passará a iniciar-se “após 12 meses sobre a data do despedimento”, o que, aparentemente, tornará possível, durante esse período, a acumulação de rendimentos do trabalho provenientes de novas ocupações profissionais com o recebimento, no final do processo, dos “salários intercalares”
Por outro lado, é sabido que a ameaça da reintegração pelo trabalhador não é sequer o principal fator desincentivador de um despedimento pelo empregador. Com efeito, o seu peso na decisão de despedir é consideravelmente atenuado pelo facto de, à partida, se saber que uma esmagadora maioria dos trabalhadores opta pela indemnização em vez da reintegração. Nessa decisão de despedir, assume uma importância decisiva – mais do que a possibilidade (mais ou menos remota) da opção pela reintegração, mais do que o valor da indemnização de antiguidade a pagar – a questão dos chamados “salários intercalares” (e inerentes contribuições para a Segurança Social a seu cargo), que o empregador pode ser chamado a liquidar (com as deduções legais) por todo o período que decorra entre o despedimento e a sentença final transitada em julgado.
Será fácil perceber que, atendendo à morosidade na obtenção de uma decisão final de um tribunal, o somatório de tais salários e contribuições pode atingir valores exorbitantes, o que, com frequência, aconselha o empregador a procurar negociar uma desvinculação por mútuo acordo mais do que a expor-se ao risco da aleatoriedade (quanto à decisão e à duração) do curso judicial de um despedimento imposto.
Esclareça-se ainda que a recusa da reintegração pelo empregador, nesta nova configuração, continua a ter como contrapartida o pagamento de uma indemnização consideravelmente agravada, que pode chegar ao dobro da aplicável, não havendo oposição à reintegração. Pode, pois, afirmar-se que, na hipótese de o empregador a requerer, o poder negocial do trabalhador na negociação de eventual acordo judicial sairá reforçado nessa mesma proporção em confronto com uma situação em que o empregador não se oponha à reintegração.
Deve ainda dizer-se que o Anteprojeto vem propor duas alterações que, em certa medida, podem tornar mais fácil ou menos oneroso o caminho da impugnação judicial pelo trabalhador.
A primeira respeita às deduções a que estão sujeitos os já referidos “salários intercalares” a liquidar ao trabalhador. Segundo a norma atualmente em vigor, desses “salários intercalares” devem ser deduzidos quaisquer rendimentos que advenham ao trabalhador por outras atividades profissionais iniciadas depois do despedimento. Ora, o que decorre do Anteprojeto é que essa dedução passará a iniciar-se “após 12 meses sobre a data do despedimento”, o que, aparentemente, tornará possível, durante esse período, a acumulação de rendimentos do trabalho provenientes de novas ocupações profissionais com o recebimento, no final do processo, dos ditos “salários intercalares”. É caso para dizer que “quando a esmola é grande o pobre desconfia”, pelo que será prudente aguardar pela confirmação por parte do Governo se é este o significado que pretende dar à norma.
A segunda das referidas alterações é uma “bolsa de oxigénio” para quem quer que pretenda impugnar uma cessação por despedimento coletivo ou por extinção do posto de trabalho: a eliminação da regra que atualmente o obriga, nessa eventualidade, a devolver a compensação ao empregador e a ficar privado da mesma enquanto o processo estiver pendente. Escusado será dizer que essa obrigação é altamente desincentivadora do recurso aos tribunais por parte do trabalhador, mesmo que tenha fortes razões para crer que a razão está do seu lado. É certo que o Anteprojeto a substitui por uma “obrigação de prestar caução da compensação recebida”. Todavia, o seu efeito é bem menos penalizador para o trabalhador, uma vez que lhe permite ainda assim dispor da compensação, e porque tal caução só lhe é exigida se requerer a reintegração.
Onde o Anteprojeto pode, sim, pôr em causa garantias do trabalhador é na sua intenção de vir a permitir a renúncia de créditos pelo trabalhador através de “declaração escrita reconhecida notarialmente”. Para tentar perceber o alcance desta alteração, justifica-se atentar nos seus antecedentes mais próximos.
Se a declaração de renúncia do trabalhador aos seus créditos laborais, desde que reconhecida notarialmente, passar a valer em qualquer momento da relação de trabalho, e não apenas no momento da sua cessação, o impacto será significativo
Até 1 de maio de 2023 (data da entrada em vigor da última alteração ao Código do Trabalho na matéria), era consensualmente aceite pelos tribunais superiores que a garantia de irredutibilidade da retribuição (ou seja, a proibição de reduzir a retribuição ou a ela renunciar, salvo nos casos expressamente previstos na lei) só perdia efetividade no momento da cessação do contrato de trabalho, altura em que se admitia que o trabalhador, por já não se encontrar em posição de subordinação, podia validamente dispor ou renunciar aos seus créditos.
A referida alteração de 01/05/2023 passou, no entanto, a proibir a renúncia de créditos pelo trabalhador salvo se validada por uma transação judicial, o que, pelo menos em teoria, veio dificultar a negociação de desvinculações por mútuo acordo, com prejuízo também para o trabalhador.
O que o Anteprojeto vem agora propor é que a renúncia de créditos pelo trabalhador seja permitida por uma mera declaração escrita do trabalhador, desde que objeto de reconhecimento notarial. Dir-se-á, numa primeira leitura, que a inserção da norma num artigo que trata da prescrição de créditos laborais nos leva a situar essa possibilidade de renúncia, ainda e sempre, no contexto da cessação do contrato de trabalho, continuando a vedá-la na pendência da relação laboral. Todavia, não é descabido pensar que a nova redação, a ir por diante, possa prestar-se a outra interpretação (do empregador e dos tribunais), como aliás já o alertaram algumas vozes, incluindo académicos de renome: a de que a declaração de renúncia do trabalhador aos seus créditos laborais, desde que reconhecida notarialmente, passaria a valer em qualquer momento da relação de trabalho, e não apenas no momento da sua cessação. A ser assim, o impacto será significativo: basta pensar na facilidade com que, voluntaria ou involuntariamente, de boa ou má-fé, o empregador, à custa do temor reverencial ou do receio de retaliação que inspira no trabalhador, conseguirá dele obter declarações (notariais) de renúncia na pendência do contrato de trabalho (veja-se o potencial que estas podem ter, por exemplo, em matéria de redução da retribuição e de trabalho suplementar ou noturno não pago).
Caso seja essa a intenção do Governo, não nos iludamos quanto ao seu carácter verdadeiramente revolucionário, pois representará um golpe profundo na razão de ser do Direito do Trabalho como o conhecemos: a de um conjunto de normas criado para proteger o trabalhador, tido como a parte mais fraca e vulnerável na relação laboral.
