Já tiveram filhos? Se sim, sabem das maravilhas que uma ecografia traz ao pequeno apocalipse íntimo que é uma gravidez. (Se não, tenham paciência: há realidades que só se aprendem quando ocorre à misericórdia de Deus virar-nos de pernas para o ar.)
Quem já foi pai ou mãe nos últimos anos talvez conheça uma nova modalidade de ecografia que, em vez daquela velha imagem, entre a sombra do radar e a ilegibilidade de uma espectrografia telescópica, revela com detalhe tridimensional quem, dentro da barriga da mãe, já lá mora inteiro. Vemos-lhe o nariz, os olhos, as orelhas, o queixo, a testa, aquela expressão inacabada de quem já é uma alma completa.
Surge isto a propósito de um artigo que descubro no Jornal de Notícias, no qual a Entidade Reguladora da Saúde alerta para “riscos” das tais “ecografias emocionais”. Riscos?! Perguntei-me logo: riscos de quê? De mostrar demais? De ver a verdade? De expor aquilo que a linguagem moderna tenta esconder com tanta perícia moral? Provavelmente; mas seria sempre preciso alguma cautela perante um assunto tão sensível.
Li então o documento da ERS. Os burocratas falavam de “exposição desnecessária aos ultrassons” — o que levaria, imediatamente, qualquer leigo na matéria a imaginar radiações assassinas, feixes invisíveis, uma ameaça saída de uma novela de Philip K. Dick. Procurei, então, por dados que demonstrassem o perigo, pelos números e pelas provas. Mas não havia nada. Nem uma demonstração de dano clinicamente comprovada. Sempre que a ERS falava em “riscos”, fazia-o por insinuação. Quando uma autoridade tem medo de uma coisa, mostra os estudos, as estatísticas, as contagens de cadáveres. Não se trata disso, porém.
É antes, a tentativa de impedir que a ecografia seja usada como experiência afectiva; que seja feita por pessoal não-médico; que escape ao labirinto institucional como produto capitalizado por qualquer salão de beleza apostado em expandir os seus serviços; e que se torne — o horror — numa possibilidade de humanizar a criança. Sim, o resultado prático é esse: restitui ao feto a condição de criança.
Não me tresleiam: não defendo que o acto médico deva ser feito fora dos limites terapêuticos. Não é esse o caso. Nem o meu ponto. A questão é que, à boleia deste zelo regulador, chocámos de frente com um sintoma cultural especialmente abjecto no caso da vida intra-uterina: o problema com a realidade. Que é o problema de toda e qualquer ideologia.
Já ouviram falar no bebé-porco? É uma criação de Lewis Carrol, e é também o tema de uma tese que o meu amigo Filipe Costa Almeida prometeu publicar no aniversário dos 20 anos do referendo ao aborto. Não lhe vou ficar com os méritos da ideia, mas vou-lhe pedir emprestada a imagem por uns instantes (ele não se importa): a criatura que Alice aceita cuidar enquanto é bebé é repudiada assim que se percebe que é um porco. Os termos são exemplares para definir a tragédia: se for bebé, exige cuidado; se for porco, não obrigado; ou seja, a linguagem determina a dignidade da própria existência. O problema nunca é técnico, é sempre semântico, logo espiritual.
Desde o início que a discussão pública sobre o aborto esbarra na mesma muralha: a verdade concreta do que ali está. Para fugir a isso arranjam-se termos assépticos, eufemismos pseudocientíficos: “feto”, “conjunto de células”, “tecido gestacional”. Já quando a gravidez é desejada, a gíria científica evapora. Diz-se “vida”, diz-se “bebé”, diz-se “a “Verinha” e “o Rafael”. Ninguém se ofende. É o triunfo da vontade sobre o real, o delírio narcísico de uma época que acredita que o mundo existe segundo a medida do seu desejo.
Diz-se de uma mulher quando está grávida que está à espera. É uma das mais bonitas verdades que conseguimos ainda não corromper. Mas não se diz que o bebé também espera. O intervalo é mútuo, a suspensão é dos dois, a esperança partilhada. Da mãe sabemos-lhe o rosto, mas do filho — qual santo prestes a ser lançado na vertigem incandescente da aventura humana — há um véu, um manto de carne que o mantém à distância de um segredo.
Nestes tempos, em que com facilidade nos livramos do peso de uma vida à conta de truques de linguagem, é quase obsceno que seja uma máquina — uma máquina! — a reconhecer um inocente. Todo o nosso arsenal linguístico cai por terra diante de uma simples expressão adormecida. Chamem-lhe o que quiserem. Mas saibam que é um rosto a reclamar-nos.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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