Tenho de começar este texto com uma admissão de culpa. Estava lançadíssimo para bater na Rosalía. É tanto o louvor à volta de LUX, o seu último disco, que esperavam o quê? Já tinha o tricórnio de velho do Restelo posto na cabeça. Já estava preparado para mais um capítulo da profusa tradição de artistas — Madonna à cabeça — que dispuseram do imaginário religioso como ocasião de erotização gratuita. A capa, com a artista em pose simultaneamente frágil e lânguida num figurino de freira pós-cristã, estava mesmo a pedi-las.
Fui então ouvir o disco e ouvi rápido. Não me detive em nada em particular; limitei-me a procurar algum espalhafato bufo ou engenhoso que confirmasse os meus preconceitos vagos sobre a catalã. Uma pequena busca para que pudesse elaborar um discurso rápido sobre o assunto.
Por causa de terceiros — bons amigos que insistiram, quase me ameaçaram — lá fui ouvir o disco outra vez. Depois ouvi-os a falar dele. E pronto: o meu pequeno teatro de indignação ficou sem fundamento. Aquilo não é pose, não é paródia, nem tampouco artesanato vanguardista para encher o olho aos guardiões do bom gosto. É uma sede antiga, pré-terapêutica; a sede de quem a sente de verdade, e não um projecto estético sobre a secura.
Não me levem a mal o instinto cínico. Rosalía é um puzzle pós-moderno, um labirinto de tradição com ironia, capaz de misturar na mesma solução Patti Smith, reggaeton, Tarkovsky ou vídeos de dez segundos com gatos a rebolar. Por isso, qualquer gesto seu poderia sofrer dessa lógica horizontal tão propícia ao mundo do espectáculo. Na melhor das hipóteses, o disco padeceria do dilema entre o uso de iconografia religiosa e a presença de Deus dentro do texto; o que já seria uma pequena vitória. Um exercício de heterodoxia provocador e estimulante, reservado aos sábios inocentes que sabem que em todo o homem cabe sempre tudo e o seu contrário; como Rosalía sabe.
O que acontece, afinal, é que a artista catalã chegou àquela conclusão agostiniana de que o vazio que temos dentro de nós é, afinal, o molde com os entalhes negativos do Criador. Um buraco que, por mais que lhe despejemos bilhetes de avião, redes sociais, comida, álcool, namoros ou o que houver, nunca deixará de se sentir faminto a menos que receba o positivo que lhe dá forma. Como um daqueles vasos com furos no fundo por onde todos os líquidos seguem o seu caminho.
Assim, ao descobrir que precisava de Deus como quem se apercebe que é preciso água num deserto, Rosalía desarmou qualquer projecto de velho do Restelo que pudesse haver em mim. Ou em doctorfhernandez1, um utilizador do Youtube que partilhou a seguinte confissão na caixa de comentários do teledisco de Berghain, uma das mais pungentes canções do disco: “Soy de Colombia… y soy metalero… y nunca en la vida pensé escuchar un disco de Rosalía… y ahora mismo lo meto en mi playlist”.
Por isso é que LUX, mais do que um bom disco — até mais que uma “obra-prima”, como muitos lhe chamam — é a ponta de um iceberg espiritual do qual Rosalía é a protagonista mais mediática. Mesmo quando se entrega ao kitsch. O disco vale não apenas pelo que alcança, mas pelo que revela, tornando-se num marco involuntário sobre a insuficiência do próprio código musical com que se tece.
A ideia de que Deus é um intruso na cultura pope não é uma ideia nova. Ele anda por lá desde o princípio. Dylan não fez outra coisa; Cohen escreveu duas dúzias de salmos disfarçados de canções; o Nick Cave transformou palcos em híbridos de púlpitos, confessionários e câmaras ardentes. Mas o que está a acontecer com Rosalía — e com John Maus, e, se me permitem a nota autobiográfica, comigo desde Os Perdedores, de 2022 — é outra coisa. É uma divergência.
Atente-se no seguinte episódio.
Em conversa com críticos do New York Times, a certa altura, Rosalía entusiasma-se a falar de Ryonen Gensō — a bela nobre japonesa que, para entrar num mosteiro zen, mutilou o rosto para acabar com a vaidade — e os entrevistadores ficam a apanhar do ar, sem saber o que fazer com aquilo. A dessincronização dos comprimentos de onda é tal que se torna cómica. Não são ainda adversários, mas já são dois blocos inconciliáveis. Mais à frente, noutro momento (que é uma ode à dissonância cognitiva), a propósito da participação de Björk em Berghain, o crítico americano que a está a entrevistar, entusiasma-se e tenta explicar a sensação:
— “Quando ela surge na música e canta ‘This is divine intervention’, é como se estivesse a atravessar o espaço e o tempo, estendendo o braço e…”
Rosalía interrompe-o, radiante, com aqueles olhos arregalados de eterna miúda de 15 anos — apesar dos proverbiais 33 que já soma:
— “Exacto! É como se estivesse a dividir o mar em dois!”
O jornalista, sem perceber que mudou o livro, termina a frase:
—“…e a passar a tocha.”
Rosalía lá acenou, com a resignação e a esperteza aguçada de quem já topa o desfasamento ontológico em curso: quando, no seu espírito, já mora o Apocalipse, o mundo dá-lhe metáforas desportivas. É como se estivesse já num plano completamente distinto do seu próprio ecossistema cultural. Na outra margem.
Porém, Rosalia não está a liderar um regresso ao sagrado. Esse tipo de chefia revolucionária não tem lugar no místico e no profeta, é demasiado consciente. O que ela faz — e nisso é absolutamente contemporânea — é revelar que a pop, depois de ter esgotado o hedonismo, o niilismo, a pornografia emocional ou o narcisismo transmutado no mais recente activismo em voga, chegou ao seu limite espiritual e entrou num regime escatológico involuntário. Daí que a própria Rosalía lamente que muita gente, como a sua irmã por exemplo, não considere este álbum um disco pop, mas outra coisa por definir.
Eu posso ajudar nisso: é pop, claro que é pop. Mas, como estou a tentar explicar, é pop na sua estação terminal.
Agora, depois de ter passado três anos a ler hagiografias e a canalizá-las em estúdio como quem, sem dar por isso, vai abrindo a porta ao Anjo da Guarda, Rosalía chegou àquele minuto tremendo em que já não é ela que canta. Não exagero: há artistas que interpretam canções, mas há outros, raríssimos, quase nenhuns, que são cantados por algo maior. É um grupo de gente no qual ninguém entra ileso.
Tomando o que escreveu nos termos vertiginosos em que está escrito, só lhe resta um passo. Não é um passo que se dê com o pé; é um daqueles que mexem com a geografia secreta de uma vida. Ninguém o dá sozinho; é dado em nós, apesar de nós. Poderíamos chamar-lhe, roubando o título a um livro da Cristina Campo, o passo do adeus, ou o avanço para o lugar inicial, onde a vida começa.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Marbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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