Os que ainda se dão ao trabalho de ligar a televisão nos dias que correm saberão bem do que vou falar agora. É daquele refrão que ressoa em todos os canais de notícias. De meia em meia hora. Aquele eco cadente, monocórdio, como um velho relógio de parede ou um alarme avariado: extrema-direita, extrema-direita, extrema-direita. Um Pim! Pim! Pim! que badala. Como um pêndulo. Sem contradança.
Em tempos, as crianças tinham medo do lobo mau. Hoje têm medo de um homem engravatado que diz umas coisas num comício. Ou de um sujeito de cabelo rapado a segurar uma bandeira (céus, uma bandeira). São os novos monstros. E o que pode um pai perante isso? Vê-se, inevitavelmente, forçado a apagar o mapa antigo da infância: aquele pequeno território onde ainda viviam o Pai Natal, o Robin dos Bosques e a Alice. E tem de dizer ao filho, com toda a calma possível, que os monstros não existem. Sabendo que isso não é bem verdade. Coitado do filho. Coitado do pai.
Veja-se o caso seguinte. Por eficácia, não nomeio nada nem ninguém. É que, tendo tudo acontecido ainda ontem, poderia ter sido em qualquer altura dos últimos dez anos.
Um painel de comentário num canal de notícias por cabo. O tema são as migrações, as fronteiras, as convulsões sociais e outras palavras técnico-apocalípticas da mesma vulgata. De um lado, o liberal: enfático nas ideias, pontifical no tom. Do outro, o conservador: um académico prudente, um Valéry no trato, argumentando com pinças, sem deixar cair o rigor. E, ao centro, o moderador. Que todos supomos neutro.
Pois esse moderador decide (com o tom, com os olhos, com as pausas) que o conservador representa, calma, esperem: a EXTREMA-DIREITA. (PIM!). Não o disse assim, claro. Disse-o com um ponto de interrogação no fim de cada frase. É um truque. Cada questão é um projéctil. Uma exclamação disfarçada. Deixaram de ser as legítimas perguntas do bom e velho jornalismo: que procuravam, que escavavam. São teses disfarçadas de dúvida.
Não é preciso ser perito em análise de discurso. Basta estar acordado. Ouvir a entoação, contar os minutos de antena, medir a subtileza com que um é interrompido e o outro é amparado. O moderador não precisa declarar nada. A parcialidade está nos gestos. Está no silêncio. Está nos olhos. Está, às vezes, na falta de chá.
O conservador, coitado, lá faz o que pode. É encostado à parede, obrigado a responder pelos filhos dos outros: — “Ódio?! Remigração!? Extrema-direita?! (PIM!). — “Hã… bem…” balbucia-se antes da próxima interrupção. O moderador de dedo em riste e olhar severo não relata acontecimentos, ameaça a falta a vermelho. Complacente com quem se senta à sua esquerda.
Aí, com o liberal, a empatia é explicita. Dá gosto de ver. Um tu-cá-tu-lá contundente. Concordâncias em geral. Lêem as mesmas coisas, jantam nos mesmos lugares, dizem as mesmas frases. A diferença está nos sinais de pontuação.
E assim lá se vão mostrando os distúrbios provocados por quem vem da tal extrema-direita (pim!): os directos, as reportagens de fundo, os especialistas em alerta. Quando calha os protagonistas serem os malucos do outro lado da barricada, o tom muda. É como se houvesse um acordo tácito: não há desordem se a causa for luminosa. Partem montras? Estão a reagir. Acorrentam-se, despejam baldes de tinta? Estão a lançar temas para o debate. Ocupam um bairro e proclamam independência? É um laboratório comunitário. E a notícia, que devia narrar, ajoelha-se perante o caos. Literalmente.
O problema não é haver convicções. Mais as houvesse. O problema é embrulhá-las no celofane da imparcialidade. Quando até o tom na voz toma partido, o veredicto está decidido: extrema-direita. (pim!)
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.