Lembro-me de ser pequeno e de me consolar com cenários de catástrofe. A infância, essa forma de delírio sagrado, só se acalma no pavor absoluto. São duas inevitabilidades que andam de mão dada — Infância e Apocalipse. Quem tem filhos sabe: há noites em que uma criança só dorme depois de todos os dinossauros do mundo terem ressuscitado. Mas não era a destruição que me enchia as medidas. Não tenho em mim o impulso assassino: não punha cigarros na boca de sapos, nem atava latas à cauda do acidental felino doméstico que calhava passar.
Fechava os olhos e imaginava Santo Tirso submersa — uma Atlântida periférica. A água a subir, a subir, até bater no 7.º andar onde morávamos naquele tempo, e então mergulhava; como num regresso. Uma espécie de baptismo invertido. E, nesse sonho, rompia-se finalmente a má educação do mundo e desatavam-se as dissemelhanças entre o Céu e a Terra.
Por isso, quando, nesta segunda-feira, o mais velho irrompeu pela sala, em êxtase, anunciando — “É o século XIX! É o século XIX!” — eu soube. Soube exactamente de onde vinha aquele júbilo. Mas, no Francisco, essa pulsão ainda está fresca, inteira, sem culpa nem cálculo — sempre à beira de acontecer. Comigo, foi preciso um cenário real, a falência súbita do mundo, para confirmar o que sempre soubera: que há beleza no fim. Que todo o caos tem a sua gramática. Que há consolo quando tudo se apaga.
Peço, leitor, que me desculpe. Que me desculpe se trabalha com queijos ou chouriços, que não me leve a mal se tinha um voo para apanhar, ou se ficou preso no metropolitano. A minha alegria foi, talvez, uma indelicadeza. É que por umas raríssimas horas houve um alinhamento. O mundo assim desligado parecia ter tempo. E nessa suspensão milagrosa, voltei a escrever como escrevia no 12.º ano. De caderno. De esferográfica. Voltei a ler em voz alta. Para pessoas que me ouviam. Num acto de gentileza.
Quando acontece uma coisa destas pensamos logo no Apocalipse. Somos viciados no fim. Por duas razões. A primeira: não se fala de outra coisa. Tudo é ameaça. O russo, o plástico, o cigarro, o islâmico, o clima, o chip, o algoritmo, o código-fonte. Tudo nos quer matar. O mundo está por um fio e basta um estalo. A segunda razão vem da primeira e é simples: aderimos a estas teses — ainda que falsas, ainda que verdadeiras, ainda que assim-assim —porque há em nós um desejo de fim. Que é um desejo de princípio.
Os alemães têm destas coisas. Conseguem explicar até o que ainda não sabíamos que precisava de explicação. O Heidegger, por exemplo, no seu ensaio sobre tecnologia diz-nos que esta não é apenas um conjunto de ferramentas úteis. É um modo de ver. Um modo de não ver. Um “enquadramento”. E quando “enquadramos” o mundo assim, deixamos de o encontrar nos seus próprios termos. Mary Harrington, numa
daquelas condensações inspiradas chama-lhe “uma espécie de violência epistemológica por omissão”. Porque não há destruição explícita — apenas um apagamento progressivo daquilo que não serve à lógica técnica. Um rio deixa de ser um lugar com histórias, nomes, perigos, mitos. Passa a ser uma reserva hídrica com caudal médio e aproveitamento agrícola. Um velho deixa de ser um ancião com memória e presença. Passa a ser um problema de saúde pública com grau de dependência. E em vez de um lugar de espanto, ou de trabalho, ou de infância, um campo torna-se na totalidade dos hectares disponíveis para cultivo ou construção.
Ora, o apagão substituiu esse enquadramento por um silêncio novo. Por umas horas, o mundo foi-nos devolvido. Os telefones morreram com os seus ecrãs. As luzes renderam-se. O espaço digital implodiu como um balão furado. E do outro lado havia gente viva. A olhar para o céu como se ele tivesse voltado a ser um facto. As filas de trânsito pararam — não por excesso, mas por falta. De tudo. Semáforos, mapas, ordens. Aqui no bairro havia famílias a jogar a bola. Talvez seja isso que as crianças procuram quando sonham com dilúvios ou viagens no tempo: o mundo como ele é.
Foi preciso uma falha no sistema para que o sistema voltasse a funcionar. Havia nervosismo, mas era uma cordialidade, como se a falta de electricidade tivesse ligado alguma coisa que estava desligada.
Ao perder as máquinas, o mundo visível encolheu. Mas o mundo real cresceu. Os rostos alongaram-se, o tempo dilatou. Foi como se tudo estivesse a respirar. Como se o fim dos tempos tivesse decidido anunciar-se com bons modos. Fiquei com a impressão — não leve — de que esse dia, quando chegar, não será com estrondo. Não virá com trombetas nem cataclismos. Não haverá gritaria. Haverá alívio. E o espanto que só as coisas antigas são capazes de provocar.
Os cavaleiros do Apocalipse não chegarão a galope, a cuspir fogo. Sairão da bruma com a calma e a correcção de uma demonstração de dressage. De cabeça levantada e rédea solta. Com a elegância celeste de um GNR patrulhando as avenidas.
Será um dia como foi segunda-feira. E nós, que peregrinamos às cegas pelo desterro do mundo, seremos, quem sabe, conduzidos ao lugar onde pertencemos — sem fome nem mapa, aguardado desde o princípio. Um lugar submerso. Um lugar prometido.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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