O verdadeiro escritor amaldiçoa o país que escreve. Depois de o lermos, já não sabemos se ele o inventou ou se as coisas sempre foram assim. Camilo não descreveu o seu tempo — condenou-nos para sempre ao seu nome. Desde então, não somos outra coisa, senão personagens suas: trágicos, sôfregos, envergonhados. E, de tempos a tempos, há um caso que o confirma com lucidez.
Luís Montenegro é uma dessas personagens. Não por acaso — por fidelidade. Porque, em Portugal, o romance é sempre este.
O caso da empresa de Luís Montenegro foi escrito com cem anos de antecedência. O protagonista é o bacharel de província, de nome limpo, ambicioso sem pressa, educado sem subtilezas. Crente na honra — mas disposto a dobrá-la pela família. Convencido de que tudo se resolve, tudo se entende e, no fim, tudo se perdoa.
É uma história sem vilões. Em vez deles, fidalgos hesitantes, repartições indecisas, quotas mal passadas, vinho em rascunho, contratos que cheiram a papel antigo. E há o povo — que não odeia o esquema, desde que seja próximo, paternal, nortenho e venha com a melhor das desculpas: “foi pelos filhos”. Desde que não lhe custe directamente, tudo se aceita.
Ainda na semana passada, comentava o caso com o Eugénio e perguntei: — Então a empresa é para fechar?
Na pausa de rachar a lenha, bruto como o Rio Vizela, o Eugénio resumiu tudo: — Fechar? Fechar para quê? Aquilo era só facturar!
Facturar, em Portugal, é vitalidade. Sempre. Legislar, ao lado disto, é um entretém ocioso de utilidade esotérica: serve para ocupar o tempo e disfarçar o embaraço de quem acredita na força das regras.
A frase do Eugénio ficou a latejar. Não porque seja nova, mas porque ninguém a diz com vergonha. Tem aquele aroma a terra molhada, o travo do vinho novo, e o conforto da moral que já não se discute. Lisboa ouve e enternece-se. Vizela ri-se. E o País assente. O Eugénio sabe. O Eugénio é Portugal.
Camilo também sabia. Sempre soube que a nossa tragédia verdadeira não é moral — é doméstica. Que o português aceita tudo, desde que envolva uma casa, um nome de família e um sonho vagamente enológico.
Montenegro montou uma empresa. A empresa facturava. Os filhos herdaram as quotas. O PS apontou o dedo. O Chega ameaçou cortá-lo. O Governo caiu — e ninguém percebeu porquê.
A personagem está bem desenhada. Vem do Norte. É formal. É educada. Registou uma marca de vinho no meio da tempestade — com serenidade e método. Como quem sabe que o povo perdoa tudo, menos a hesitação. Não houve escândalo. Houve normalidade. O “isto resolve-se” tornado doutrina. O jeitinho como modelo de sociedade.
Montenegro é o bacharel que acredita na sua própria compostura até ao momento em que ela se torna um empecilho. A integridade, para ele, não é uma convicção: é uma herança. E, como todas as heranças, é passível de partilha, doação, adiamento ou mal-entendido.
A corrupção, aqui, não é fria nem criminosa. É morna. Caseira. Conivente. Só escandaliza se vier de Lisboa, se for tecnocrática, se falar com distanciamento. Mas se trouxer vinho, sotaque nortenho e filhos ao colo —então é outra coisa. É humanidade.
Quando Marcelo lhe chamou “rural”, não foi só um insulto de ocasião — foi o reacender da tensão entre o velho verniz liberal e a teimosia da província. Foi Eça a levantar-se do panteão, escandalizado com Camilo. Foi o Portugal elegante, estrangeirado, a olhar de cima para o Portugal trágico, bruto e afectivo. Foi a pátria dividida: azuis e brancos contra vermelhos e azuis; os que se ralam com as aparências e os que só querem que os filhos tenham o que comer.
O Governo lá caiu. Montenegro, por enquanto, não. Mas se cair, cairá de pé, entre pipas e escrituras, convencido de que fez tudo certo.
E o Eugénio, cheirando a molhado e ressoando como o barulho da enxada no granito, há-de murmurar:
— Era um dos nossos.
Está escrito. Por Camilo.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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