Tenho andado calado de propósito. Apercebi-me, há uns meses, de que o meu quotidiano na Noruega divergia a passos largos do quotidiano de Portugal – muito para lá do óbvio da cultura, distância, genética e língua. Após a excitação inicial – que levantou aí alguma poeira – da vida totalmente alterada na Noruega por causa da Covid-19, as coisas voltaram tanto ao normal que tem sido necessário um esforço intelectual para tentar apreender o que se passa no resto do mundo. Não vimos – ainda – uma máscara na rua. A única máscara que tenho usado é a de mergulho. Vende-se desinfetante à base de álcool em todo o lado, mas a primeira vez que vi máscaras à venda no “super” foi há 3 dias.
Por isso calei-me – quando falo com os meus amigos aí, as descrições que oiço da vida em Portugal são quase dissonantes, distópicas, e fazem a minha vida por aqui parecer comparativamente idílica. Número total de casos: 18666. Número total de mortes: 280. Mortes por covid-19 desde Julho: 21. Há mais noruegueses a cair das varandas que a morrer da doença. Não quero, por isso, falar da Covid-19.
Volto aqui porque as eleições nos EUA estão a estalar e há um vislumbre de esperança de que o regime de sociopatia militante de Donald Trump esteja a chegar ao fim. Quando DT foi eleito, escrevi várias coisas sobre o assunto porque os Estados Unidos são o meu “país adoptivo original” (passei um ano no Minnesota, como estudante AFS), ao qual dedico muita atenção e carinho. Tenho vários amigos nativos, desse e doutros anos de revisita; para nosso bem e nosso mal acho que a nossa cultura desde meados do século XX foi definida pela Pax Americana que reconstruíu a Europa do pós-guerra.
Para mim, foi com imensa surpresa que aconteceu Trump. A evolução destes últimos quatro anos tem-me sido penosa – uma coisa é saber que a América na sua florida diversidade produz tontinhos perigosos, outra é constatar que os tontinhos perigosos são quem vai ao volante a grande velocidade contra aquele muro que se vê daqui. É verdade que durante anos fui acompanhando nos meios académicos o estrebuchar do realismo objectivo e a sua substituição pela “post-truth”, mas achava que tal não era mais que uma aflição conceptual que vivia no nicho dos corredores de algumas universidades. Após essa fase inicial de choque, enquanto os media se entretiveram com as perversidades trumpianas eu dediquei-me a tentar compreender o mundo pelos olhos dos americanos que conhecia pessoalmente e que sabia terem votado DT. Da vida, busco compreensão. Confesso que não estava a perceber nada.
E eis um resumo do que descobri, um resumo de observações durante 4 anos de interacção quase diária com “Trump hardcore voters”:
– em 2016, quando Trump fazia bosta, a reacção era “deixa lá, não pares, não há aqui nada para ver”; agora em 2020, a reacção é “isto não é uma bosta, é a coisa mais extraordinária que alguém fez até à data, vamos erigir um monumento e prestar-lhe homenagem”.
– em 2016 tudo o que eu punha em causa por razões de racionalidade era justificado com “pois, talvez tenhas razão, mas isto é assim porque o Obama…”; agora em 2020 a reacção é “se não concordas connosco então odeias o Trump e, por extensão, odeias a América”.
– em 2016 os democratas eram americanos que tinham perdido as eleições e a quem se pedia que aceitassem o seu resultado; agora os democratas são definidos como “inimigos da América” e “querem eliminar tudo o que faz da América um grande país”.
– em 2016, o mundo ia ver como a América era grande, os aliados da América iam sentir-se mais seguros, os inimigos da América iam ter mais medo; agora a Rússia é um exemplo a emular, os governos da União Europeia são socialistas e, na generalidade, é impossível compreender bem quem os apoiantes de DT consideram “amigos” e “inimigos”, para além da linha condutora é aplicável a tudo: “se gostam publicamente de Trump, são amigos. Se não, são inimigos”.
– em 2016 o aquecimento global não estava a acontecer, ou a sua realidade era discutível, ou era um assunto que não valia a pena abordar porque não havia nada a fazer; agora em 2020, o aquecimento global é uma falácia inventada pelos socialistas que querem tomar conta do país, e um bom americano não só não faz nada para diminuir a poluição, mas usa a poluição como uma bandeira da verdadeira “american way of life”.
– em 2016 não havia Covid-19, mas havia algum respeito pela ciência e pela medicina; agora, 2020, a ciência tem o mesmo valor de uma opinião não-fundamentada, os cientistas “não sabem nada”, os médicos estão a soldo dos democratas e querem ajudá-los a controlar o país, o vírus é uma invenção para destruir DT.
– em 2016 alguns dos grupos de media eram facciosos e apresentavam frequentemente uma visão destorcida da realidade, com tendências esquerdistas; agora, em 2020 todos os meios de comunicação tradicionais são socialistas e querem destruir Trump e a América (dos maiores, a única excepção é a FoxNews, mas só quando apoiam incondicionalmente DT).
– em 2016 a América tinha alguns problemas sociais que era claramente necessário resolver; agora, em 2020, não existe racismo, os pobres são-no porque não querem trabalhar e a América “voltará a ser um paraíso se deixarem DT trabalhar”.
Segue-se o modus operandi: DT diz ou faz algo ultrajante – os media maiores reagem expondo a situação e verbalizando o ultraje – os apoiantes de DT usam esse ultraje como confirmação de que os media maiores são facciosos e, consequentemente, afastam-se, aproximando-se dos media extremistas – os media extremistas gostam da atenção súbita a que se vêm sujeitos e amplificam o que DT disse ou fez, com mais justificações ultrajantes – os media maiores expôem estas justificações ultrajantes dos media extremistas, verbalizando o seu ultraje adicional – os apoiantes de DT reagem com mais do mesmo – DT reage dizendo ou fazendo algo ainda mais ultrajante – Volta ao princípio e repete, mas em pior.
Para estes americanos, a liberdade é um conceito que se esgota no indivíduo. Quando perguntei se conheciam o adágio “a liberdade de cada um termina onde começa a do outro”, todos responderam que se tratava de um conceito absurdo e que não, não tinha feito parte da sua formação de cidadania. As noções de empatia, caridade, integração ou outros conceitos sociais a que recorremos para justificar os nossos sistemas de segurança social na Europa estão ausentes, são consideradas como “fraquezas sociais”.
Privo com mais amigos americanos que não são apoiantes de DT, mas também não são democratas, ou republicanos, ou politizados ou extremistas. Esses – que continuo a achar perfazerem a maioria dos americanos – olham para tudo isto com a mesma perplexidade e assombro que nós.