É incrível como o tempo se escapa no esgaço das vindimas, em pingas destiladas aparentemente sem sentido num embriagamento continuo e zonzo. Como em cada gota se consegue saborear cada momento como fixo, sentindo o seu terroir e o seu bouquet, ficando a solo naquela colheita como se dela dependêssemos. Vivemos ali. E sem o sabermos, há dias que notamos as linhas de vinhas em fila que nas nossas costas se alinham num continuo nem sempre linear, para as garrafas e toneis que fomos acumulando, para as pipas que fomos empilhando, pensando em quais destas escolher para vintage, o que selecionamos para ficar, onde nos queremos focar, o que queremos preservar.
Em setembro de 2010 chegava a Budapeste com intuito de ficar por 3 meses. Vinha convidado pela Central European University / CEU, como Guest Research Fellow associado ao departamento de História com a ideia simples de fazer investigação sobre o meu tópico de investigação / tese, que na altura andava em torno do eleitoralismo autoritário na Época dos Fascismos partindo do caso português, e em me envolver no excelente ambiente académico comparativo proporcionado pela Universidade que, expulsa recentemente de Budapeste, acabou de se mudar para Viena. E fui ficando.
Nos primeiros anos fui ficando porque encontrei nos meus colegas e na qualidade da investigação associada à CEU um ambiente ímpar na minha vida universitária. A CEU, para quem já não se lembre, conseguia atrair (hoje já não sei) estudantes verdadeiramente excepcionais, a esmagadora maioria vindos da Hungria e dos países limítrofes (Áustria, Sérvia, Croácia, Polónia, República Checa, Eslováquia, Eslovénia, Croácia, Arménia, Geórgia, Macedónia, Montenegro, Roménia, Moldava, Alemanha, Turquia, etc), compilando um conjunto muito bem preparado de jovens sociólogos, historiadores, antropólogos, filósofos, cientistas sociais e políticos, a esmagadora maioria pensadores livres e críticos, e com temas de investigação fascinantes, analíticos e comparativos. Com eles cresceu, muito, a minha capacidade de melhor entender o mundo, de explorar as nuances da nossa contemporaneidade nas suas dimensões comparativas, sincrónicas e diacrónicas (no espaço e no tempo).
Nesta pista de aterragem, a primeira parte desta minha década foi um bálsamo para a mente, cheia diariamente pela dinâmica de uma cidade imperial, berço de tanta intelectualidade, casa de poetas e pensadores, de fotógrafos e inventores, metrópole de uma multiculturalidade bem diferente da minha de raiz e ritmos de origem latina, africana e (sul) americana. Aqui encontrei uma outra Europa. Uma Europa com Austro-húngara, sítio por definição e vivência de diversas culturas que sempre agregou em convivência integral e contestada por húngaros e alemães (Budapeste era uma cidade essencialmente alemã em meados do século XIX), eslavos de diversas origens, povo Roma e outras étnicas, todos com uma relação suficientemente orgulhosa com a sua própria historia, cultura e religiosidade para fazer da cidade um arco-íris de costumes, crenças e religiões, visíveis na plêiade de templos e seus diversos ritos: cristãos de obediência católica, protestante ou ortodoxa, e judaicos. É um puzzle deslumbrante que ganhou garrido na cor quando Buda, Peste e Óbuda se tornaram na outra capital do Império, antecâmera e contraponto liberal e boémia, experimentalista e académica, científica e literária a uma Viena por vezes demasiado formalista e estratificada.
Por isto, saíram ou passaram por aqui tantos Nobel e inventores, tanto contributo para a história intelectual desta nossa Europa cheia de sabores contraditórios. E por estas mesmas razões, em minha opinião, é totalmente desprovida de qualquer enquadramento estruturado a atual narrativa etno-nativista promovida desde 2010 pelo Sistema de Cooperação Nacional, espécie de União Nacional Magiar, que deste puzzle orgânico e multicolor tem procurado forçar uma interpretação visivelmente a-histórica e unitária da alma e espírito húngaro, que apenas serve os objetivos predadores de um conjunto de homens que, como no passado alguns, procuram extrair os recursos do País para usufruto e enriquecimento próprios, fechando a sociedade numa hierarquia definida onde os que querem e aceitam tem um lugar, desde que fiquem e não contestem esse mesmo lugar. Esquecem, ou procuram fazer esquecer, que Budapeste é, e sempre foi, uma cidade aberta, não ao Mar e às incertezas e esperanças do Oceano que banha Lisboa, mas ao Danúbio, essa primeira autoestrada europeia, domada, e todas as rotas intra-europeias que há milénios cruzam a planície da antiga Panónia romana. Por isto, tantas e tantos amigos húngaros saíram do país nesta década que agora se presta a findar, pois recusam viver no ambiente asfixiante e tóxico que qualquer união nacional transporta, procurando a sua liberdade noutras paragens.
Mas nada disto é novo na vida de uma cidade batida, exposta, desejada. De feitiço e sedução própria. Não como Lisboa que carrega mais de dois milénios de centralidade esquizofrénica, mas com urbe com um século e meio de alta rotação dramática, polarizada nos extremos, e objeto da cobiça totalitária de muitos, fecundos e defuntos, projetos políticos. Foi aqui que verdadeiramente entendi o significado das Grandes Guerras Mundiais, que conheci quem nelas teve dos pais e avós memórias orais, e consegui visualizar no real a informação que me tinha sido apresentada em livros e palestras. Consegui também, agora ainda com mais proximidade, ver as nuances escondidas na (antiga) cortina, romper com a dinâmica hegemónica da recente dicotómica da Europa Ocidental / Oriental e entender que a artificialidade Leste-Oeste vivida durante 50 anos (hoje por alguns ressuscitada) não assenta na herança nem no legado de séculos de Europa Central, devidamente integrada nos eventos do Velho Continente.
Aqui, em Budapeste, houve mesmo Primeira Guerra, e mobilização geral, e fome e miséria e morte, e perda. Depois caos. E revolução, e uma república socialista (não moscovita) liderada por Béla Kun, uma imediata contra-revolução liderada por Miklós Horthy e finalmente a facada do Tratado Trianon. Um pós-guerra agitado de revoluções e contra-revoluções, de terror vermelho e depois branco, como por toda a Europa desse agitado pós (1ª) Guerra. Depois, com Horthy no topo, ainda como Almirante, agora de um país sem mar, mas também como Regente, de um país sem rei, viveu-se o entre-guerras num autoritarismo-calmo, sem esquerdas, daqueles onde Salazar era bastamente apreciado e mimicado. Um autoritarismo acelerado sucessivamente até esbarrar dramaticamente, já no final da guerra, e já sem Horthy, (que se refugiará no Estoril), no nazismo nativista das flechas quebradas e na desumanidade maquinada do holocausto, e no posterior cerco de libertação de Budapeste pelo Exército Vermelho. Sei hoje que onde os turistas se divertem a saltar de bar em bar no bairro alto daqui (o VII Distrito) foi um dos ghettos da cidade que albergou 70.000 judeus no inverno de 44 para 45, e que na altura o Embaixador Carlos Sampaio Garrido (e o seu chargé d’affaires Alberto Teixeira Branquinho) salvaram a vida a mais de 1000 judeus, entre eles a família de Zsa Zsa Gabor. Sei também onde se podem encontrar os vestígios das trincheiras defensivas montadas pelos nazis e pelos húngaros na periferia da cidade, onde hoje se fazem ótimas caminhadas para os putos brincarem, e por onde os russos passaram para entraram pelo Varosliget descendo a Andrassy num combate à morte, rua a rua, casa a casa, que destruiu muito desta pérola do Danúbio e que calcou depois as peças de um movimento unitário, de manipulação externa, que levaria pouco depois da guerra à ocupação total das instituições, novamente ao aniquilamento das oposições e de qualquer existência política e social fora do dogma do partido único, este sim de controlo moscovita, com caras e personagens locais. E nem vos vou falar de ’56, e do impacto que ainda hoje se sente e vê na alma da cidade dos eventos desse Outubro de liberdade, esperança e visão humanista do socialismo à húngara que se desejava e da arrepiante repressão soviética, pidesca (AVO), que se seguiu, amordaçando novamente o povo magiar num garrote hemorrágico (foram novamente centenas de milhar a abandonar o país), seguido de um sono lento induzindo pelo comunismo Gulyás (Goulash) de Kádár até as transformações de 89 e do início dos anos 90 terem finalmente retirados os soviéticos de Budapeste e procurado voltar a entregar aos húngaros as chaves-mestre do seu destino. Muitos foram os amigos e amigas cujas avós e avôs foram testemunhas diretas de tais eventos, e que continuam a transportar consigo as chagas de tantos terramotos seguidos. E que incríveis serões passei a ouvir essas, e outras, histórias.
Em todo o caso, talvez tenha sido este script dramático cheio de sub-plots e entrelinhas, estes cheiros de culturas, lugares de miscigenações e combates, estes ambientes de encontros e de trends que inscreveram, para mim, Budapeste na linhagem direta de Lisboa, como uma das suas meia-irmãs. Uma meia-Irmã filha da mesma mãe energética, ritmada e acolhedora para acomodar tantos e tantas que procuram uma polis aberta e multicultural em constante movimento, mas de diferente pai náutico: o de Lisboa o Oceano, salgado e abrupto, o de Budapeste o rio, doce e cinicamente dócil.
Nesta Budapeste fiz esgrima, nu-tango e dança contemporânea, yoga, hikings e muita bici, estive em estádios cheios a ver polo aquático e natação e era para ter visto a selecção defender o Euro. Vi shows 3D projetados na montra que é a cidade, ouvi Liszt e Bartok, toquei violino, aprendi o que é um Marcado de Natal, e vivi numa cidade Vivaldi com as suas 4 estações a definir muito bem os seus tempos e usos. Vi Quimby várias vezes (os Xutos e Pontapés locais), fui a tributos ao Cseh Tamás, ao Szimpla antes de ser o Szimpla Lonely Planet, ao Sziget, muito e bom Jazz e centenas de concertos em bares e kocsma (tascas), procurando fazer honra e acrescentando rock & roll às noites de Budapeste a mim apresentas pelos Mão Morta. Só tive pena ter perdido os Dead Combo no A38, pois certamente teria umas histórias para contar com o Tó Trips e com o Pedro Gonçalves acerca da noitada subsequente.
Daqui se depreende que também tive uma fase boémia, na boa apreciação a apropriação do conceito, a chamada fase Baudelaire que se apraz passar e viver, e uma hedonista, experimentando sabores, sensações e destilações, esta de tributo a Oscar Wilde, também momentos importantes e formativos. Fui também a muitas manifs contra muitas das políticas de controlo institucional deste governo (controlo dos media, da internet, fecho de jornais, etc), celebrações dos grandes momentos simbólicos dos húngaros, os seus 25 de Abril, nomeadamente o 15 de Março (1848) e o 23 de Outubro (1956), bati-me para que a CEU se mantivesse em Budapeste e envolvi-me, na medida do meu possível, na crise dos refugiados de 2015, ajudando em Keleti e nas auto-estradas, fazendo e distribuindo comida em cozinhas coletivas, enquanto sentia a solidariedade escondida da cidade florescer. Há por aqui muita gente boa. A mesma solidariedade e boa cepa humana o senti na forma como fui vivendo o Pride e a minha relação com a comunidade LGBTQ, pois se no meu primeiro ano milhares de neo-nazis se manifestavam em diversos pontos da cidade, num desfile cheio de polícia, balizado por cercas e pontos de entrada e saída fixos, já anos mais tarde, enquanto membro dos RoR, tocámos na primeira marcha verdadeiramente aberta e livre, sem barreiras, com dezenas de milhares de participantes de todas as cores, e onde a cidade nos acolheu a dançar e a sorrir. Fazer parte desta transformação, nessa altura, admito ter-me dado muita esperança. Foi uma altura em que havia muitos espaços de liberdade, de respiração, de alegria. Hoje a maioria das pessoas desta comunidade já não se encontra em Budapeste. Não conseguem, pois falta-lhes ar e condições para viverem como são, como todos devíamos viver. Muitos e muitas vieram inclusive para Portugal.
Depois mudei de tese, trabalhando as “Retóricas do Fascismo: difusão e recepção do Estado Novo no contexto dos processos de transição institucional da Europa da Nova Ordem”, que trata na essência a forma como Salazar e o Estado Novo português intervieram e se posicionaram no debate fundamental sobre a natureza do Estado durante o período entre-guerras. Naturalmente que a Hungria de Horthy era um dos países onde o nosso ditador das finanças era muitíssimo apreciado. E doutorei-me, já em Lisboa. Depois transitei eu. E de Budapeste partiram as ideias que fundaram em Lisboa as empresas às quais (também) me dedico hoje, uma que trabalha sobre a tecnologia blockchain, a outra em torno de neurofeedback. Descobri aqui que se pode passar um Verão em lagos e rios, e não somente na praia, e confirmei que na essência, sem a política, as pessoas são naturalmente solidárias e acolhedoras para com o Outro, que dele querem saber mais, que acham piada aos seus costumes diferentes, e que genuinamente a decência impera, enquanto se viram um par de palinkas e se comuna de um Lecsó a lenha e à antiga (apesar de por estes lados nem todas as portas se abrirem ao primeiro contacto). Por estas bandas assumi também, definitivamente, a minha costela comparativista, matizando alguns dos preconceitos naturais de quem lhe falta a experiência de conhecer. Tive relações e flings, conheci a mulher do meu filho, e hoje da minha vida, e com ela fiz família. Aqui nasceu o Luka, com nacionalidade incerta pois estes magiares ainda se agarram a algumas coisas datadas como o jus sanguinis, mas ficou português pela mão de uma húngara lusitana, a quem 10 minutos de Embaixada lhe bastaram para lhe parir um CC.
Nesta última década, acabei também eu por me tornar testemunha da História, pois vi Budapeste perder parte dos seus traços liberais enquanto paulatinamente sucumbia aos apetites ferazes de uma nova oligarquia orgulhosamente pouco urbanizada e vaidosa das nódoas que vai deixando onde consegue, e que todos esperam que evaporem em poucas lavagens. Uma oligarquia que hoje faz finca pé à Europa porque almeja-se no direito de defender uma leitura iliberal da democracia, distante dos valores fundacionais da União Europeia que conhecemos e dos princípios-base de qualquer Estado de Direito, e que ameaça boicotar quer o Orçamento da União como o Fundo de Recuperação e Resiliência porque simplesmente pretende ficar fora de qualquer processo de escrutínio extra-nacionais (ler instituições europeias) e que não existam quaisquer referências à qualidade das instituições receptoras dos mesmos fundos, pois entende que cabe ao governo húngaro, em representação e em uníssono com o seu povo (construída e validada através do Sistema de Cooperação Nacional) a gestão exclusiva e sem interferência dos seus afazeres, com a leitura de que já lhes bastou – aos húngaros – as décadas de ocupação sofridas no passado e que agora são eles donos e senhores deles mesmos. Ou seja, vocês, organização extra-nacional, passem-nos o dinheiro, e nós, Estado soberano húngaro agradecemos e fazemos com o mesmo o que bem entendemos dentro do quadro institucional que, entretanto, reconstruímos nos últimos 10 anos.
Neste sentido, esta década foi também um interessante ponto de observação para quem estuda e reflete sobre o ataque às instituições do Estado, os processos de substituição das elites, e subjacente leitura monoteísta da sociedade política por parte de quem não aceita as regras do jogo democrático nem os princípios de separação de poderes e accontability cruzada que Montesquieu nos deixou desde o século XVIII, mas antes idealiza um modelo monocolor e unitário de ocupação total das instituições, de aniquilamento das oposições, de não aceitação de qualquer existência política e social fora do dogma da união nacional nem de conceptualização de partilha ou alternância no poder. Tudo pela Nação, nada contra a Nação, parece ser o mantra local. Mas como temos visto, nada disto é novo numa cidade habituada a drama intenso e regular, e como em tantas outras vezes no seu passado (1848, 1956, 1989), novamente Budapeste parece se estar a insurgir contra o que considera ser um espartilho intolerável aos seus direitos de associação, à sua herança liberal (no sentido lato) e à aceitação da necessária complexidade das sociedades modernas, adversas a políticas monistas e centralizadoras. Esta auto-proclamada luta pela liberdade teve um primeiro apogeu nas recentes eleições autárquicas, que viu uma alargada coligação anti-Fidesz apoiar a candidatura unificada de Gergo Karácsony, voltando assim a dotar de ritmo e precursão o anteriormente monocórdico mapa laranja húngaro. E para quem não esteja dentro das características e sabores das laranjas húngaras (Magyar Narancs) sugiro ver a cara do grande líder ao experimentá-las em A tanú / A testemunha (1969).
Será interessante verificar até que ponto este evento irá marcar a transição entre as minhas décadas em Budapeste, sendo já certo que os tempos que se adivinham até às próximas legislativas serão de intenso combate político e, espero, melhoria substancial das condições do debate público húngaro. Espero ainda que a cidade consiga recuperar parte da energia agora confinada, e que a retoma seja rapidamente uma realidade verificável, apesar de temer que o pior (do ponto de vista económico e social) esteja ainda para vir, o que infelizmente se tem confirmado tendo em conta as recentes notícias da Hungria (e de Budapeste).
Enfim, tudo isto para deixar clara a natureza intensa e recompensante desta minha década de relação bígama entre estas urbes femininas, entre estas meias-irmãs tão batidas pela dor e pelo drama, uma embalada ao som da guitarra portuguesa, outra enfeitiçada pelas corda do violino, mas que mantêm na sua alma, no seu centro, as cores mais garridas que realçam as virtudes das complexidades naturais das sociedades urbanizadas e nos deixam certezas e esperanças para o futuro: Lisboa e Budapeste. Duas cidades cheias de pipas e bom vinho, daquelas em que os vintages se proclamam com facilidade, praticamente todos os anos.