Julgo que poucos disputarão que o futuro será dominado por um conjunto de novas tecnologias que hoje se encontram nos seus primeiros passos. Termos como IoT (internet das coisas), IA (inteligência artificial) ou Blockchain / Distributed Ledger Technology DLT, exclusivos para geeks e entusiastas há poucos anos, têm feito o seu caminho para a luz do dia, sendo hoje do conhecimento geral de quem procura seguir as grandes tendências da geopolítica digital, a tal economia 4.0. Grandes e médias empresas, Governos, instituições internacionais e ONGs, mesmo a União Europeia, tem dedicado tempo e recursos na procura da melhor articulação entre as aplicações privadas e públicas desta vaga tecnológica, em entender o seu potencial disruptivo, e que enquadramento legal e regulador promover, se nacional, europeu ou internacional. Basta, aliás, seguir o recente debate em torno da atribuição de licenças e condições para a implementação do 5G, ou o rebranding de Malta como Blockchain Island para percebermos que este futuro – tão distante há tão pouco tempo – se encontra ao virar da esquina, com consequências evidentes no posicionamento estratégico de países e regiões. E também ninguém discute que tratamos, sempre, de data, meta-data, proveniente dos correntes processos de digitalização, automação, robotização, e do seu controlo e uso.
Este caminho, que alguns chamam de quarta vaga revolucionária industrial (como no passado fora a revolução iniciada pelo carvão / vapor, a que se seguiu a da eletricidade, e mais recente a que acompanhou os computadores e mais tarde a internet), é já inevitável e visível na tendência de megalopolização dos grandes espaços públicos e cidades, que hoje se agregam em largas malhas urbanas com ligação continua, albergando dezenas de milhões de seres humanos, sistemas de transportes e gestão de tráfego, tratamentos de águas e resíduos, robotização, monotorização, recolha de lixo, CCTV, etc. Tudo ligado e em rede. Tudo interligado e interdependente. Subjacente a este processo de aglomeração urbana encontramos os conceitos de Smart City, desenvolvimento sustentável, eco-tech, e digital.
Ora, cruzem-se agora todas as novas tecnologias disruptivas, como Blockchain / DLT, IoT, AI e 5G, todas com geotracking e capacidade de monitorização em directo e intersectamos Blade Runner com 1984, ou seja, um futuro/presente permanentemente online, gerador de data em cascata, com ínfimas possibilidades de vigilância e controlo social, e onde as questões da identidade e soberania digital serão decisivas para manter vivos quaisquer desejos de que estas sociedades futuras assentem em pressupostos democráticos, liberais e multi-representativos. Daí a importância de pensar-se sobre estes impactos hoje, simultaneamente a nível nacional e europeu, pois estou certo que somente sob tutela da União Europeia se conseguirá construir a arquitetura legal que pode salvaguardar as tais liberdades individuais e valores liberais que referia. Basta pensar que os espaços geopolíticos concorrentes da EU, EUA, China e Rússia, têm todos perspectivas bastantes distintas sobre como abordar estes assuntos: americanos em certa medida permissivos e descentralizando nas grandes multinacionais os processos de decisão (Facebook, Amazon, Microsoft), russos e chineses sem quaisquer preocupações de RGPD, com capacidade de intervenção e implementação do topo para baixo.
A questão é então saber como consegue a União Europeia, no seu actual quadro, ser competitiva com os seus principais concorrentes, sabendo que não dispõe da cultura financeira norte-americana (nem das suas multinacionais), nem a capacidade centralizadora chinesa ou russa, tema aliás várias vezes exposto pelo comissário Carlos Moedas ao identificar a falta de mecanismos e cultura empresarial capazes de suportar de forma eficaz a inovação e scaling upeuropeu. Por um lado, acrescento eu, sendo verdade que existem milhares de milhões de euros em fundos europeus para apoios a projectos em áreas e tecnologias de ponta, os mesmos encontram-se apenas ao alcance dos grandes grupos económicos / multinacionais / consórcios, demorando a sua burocracia anos para que se entre em fase de implementação. Por outro lado, quaisquer apoios a pequenas ou médias empresas, ou padecem de um lento sistema demasiado burocratizado (que leva meses e meses a preparar candidaturas, mais meses e meses para apreciação e aprovação, e ainda mais meses e meses para que as tranches cheguem, isto quando as mesmas não existem somente como reembolsos) ou é localizado nacionalmente, ou seja, depende de apoios (como o Portugal 2020) enquadrados no espaço dos países da União. Ambas as situações, a meu ver, retiram agilidade e competitividade ao tecido empresarial europeu, em especial o que se tem gerado em torno da energia das startups, porque retiram velocidade numa área onde esta é imperativa, e impedem que um novo tecido empresarial, europeu, se forme e cresça como europeu, e não apenas como extensão de projectos nacionais.
Permitam-me que apresente um exemplo concreto: a DKJ International é uma empresa que recentemente constituí com dois sócios húngaros. Está registada em Lisboa, apesar de todos os seus sócios viverem em Budapeste. Foi fundada em meados de 2018, pode ser considerada como uma Start up com capitais próprios que se posiciona no mercado como consultora, mediadora e fornecedora de conteúdos / projectos para as áreas de blockchain e crypto assets. O nosso CTO reside em Malta, temos desenvolvido relações de parceria estratégica com empresas em Belgrado, na Lituânia, África do Sul, Estados Unidos e Índia, e acabamos de regressar da China, onde elaborámos uma extensa análise técnica e empresarial a todo o ecossistema em torno de uma nova criptomoeda. Esta consultadoria, com clientes chineses, húngaros, franceses e alemães, envolveu não somente uma apreciação técnica especializada da plataforma de blockchain que sustenta a citada criptomoeda, como uma apreciação das restantes peças do seu ecossistema: um website para câmbio FIAT-crypto, um marketplacecom centenas de produtos à venda e uma plataforma de Igaming. Assumimos assim, como se depreende, desde a nossa fundação, uma perspectiva de intervenção global. Uma decisão empresarial hoje corriqueira, mas infelizmente pouco integrada na maioria das formalidades institucionais que procuram dedicar apoio a projectos empresariais identificados como «de ponta», de grande valor acrescentado, ou de vanguarda tecnológica, como referi.
Agora vejam este exemplo prático: como empresa ligada à área de blockchain, e considerando a juventude e carência de casos práticos desta tecnologia, temos naturalmente intenção de desenvolver produtos próprios, protótipos que nos permitam validar conceitos, e apresentá-los depois das fases de testes a potenciais clientes. Em concreto, pretendemos desenvolver uma solução ligada à área da logística, sector onde os proveitos de blockchain são bastantes visíveis, uma vez que pode ser permitido acesso total à rastreabilidade do produto, possibilitando ao consumidor confiança plena da sua proveniência e ao produtor um conjunto de mecanismos de controlo sobre o seu stock, pois colocando smart sensorscom geotrackersnas mercadorias é possível seguir toda a cadeia de distribuição. Dependendo da plataforma blockchain utilizada, é também possível a inserção de smart contracts, recolhendo assim os benefícios do conjunto de automatizações simplificadoras de alguns processos administrativos ou de cariz fiscal e financeiro. Com estas intenções procurámos financiamento para o desenvolvimento do protótipo junto de quem prepara candidaturas ao Portugal 2020. E rapidamente percebemos que não encaixávamos nos requisitos necessários, visto que obrigavam a que a equipa de developers estivesse em Portugal. E uma vez que temos as nossas peças espalhadas por diversas geografias não nos era permitido concorrer. Nem a grandes fundos europeus, pois não temos dimensão nem capacidade para aguentar financeiramente os processos de candidatura. E estou certo que os nossas características são seguidas por muitas empresas e empreendedores que trabalham em áreas tecnológicas de ponta e de vanguarda e que necessitam de colaboradores altamente qualificados, pouco se importando com espaços definidos por fronteiras nacionais, pois fazê-lo pode significar perder competitividade, visibilidade, mercado e capacidade de assumir uma certa centralidade em áreas em rápida evolução.
Com este exemplo procurava demonstrar como parte do actual sistema de apoio a startups, especialmente a sua base de incidência nacional, tem dificuldade em relacionar-se com projectos com estas novas características, já para não referir os casos de empresas que iniciam as suas actividades em território nacional, mas rapidamente se mudam para outras localidades (como Zug, ou Malta). Por outro lado, não tenho conhecimento de que existam mecanismos transnacionais ou europeus que possam apoiar estas fases iniciais da vida de uma empresa, especialmente as que se encontram bem definidas em relação ao seu mercado, munidas das competências correctas, e que pretendem apoio para projectos muito concretos, e não o enredo de rondas de investimento, VC meetings ou visitas a Web Summits, processos que levam meses a preparar, anos a concretizar, e à inevitável perda de equity. Existem sim dezenas de apoios para grandes consórcios, para empresas multinacionais de média e grande dimensão que conseguem suportar os custos necessários para passarem meses a preparar candidaturas de milhares, às vezes milhões de euros. No nosso caso, falamos do apoio de um par de dezenas de milhares de euros apenas, ou seja, de pequena escala. Acresce ainda ao descrito a falta de capacidade técnica para avaliar projectos nestas áreas ditas disruptivas, pois a maioria dos analistas de risco mantêm ainda uma visão bastante conservadora e tradicional nos seus processos de análise. Da mesma forma, muito do apoio institucional encontra-se desenhado para apoiar a internacionalização de sectores tradicionais.
Julgo assim, pelo exposto, que é imperativo repensar alguns destes formatos de ligação entre os fundos institucionais de apoio à inovação e as características das empresas que hoje emergem no mercado. A meu ver, a Europa não deve procurar replicar o modelo norte-americano e julgar que consegue edificar um ecossistema financeiro de apoio ao investimento assente numa cultura de risco com cerca de um século (basta pensar no mercado bolsista e na percentagem de americanos que tem acções), e onde Venture Capitals ou Angel Investors procuram oportunidades desde os anos 60, com milhares de milhões de dólares em carteira e uma atitude de risco que aposta na diversificação de portfólio. E muito menos deve ser esta estratégia ser seguida em cenário de pós-Brexit, pois reside no Reino Unido a esmagadora maioria dos fundos de investimento no espaço europeu (juntamente com a Alemanha e França). Julgo antes que devem ser apoiados ou criados mais mecanismos transfronteiriços (multi e bilaterais) que apoiem empresas de carácter europeue não apenas projectos nacionais que procuram internacionalizar-se dentro do espaço da União. Acredito ainda que seria importante repensar – no quadro do próximo orçamento da UE – a relação entre o sector público europeu, o sector público nacional, e o sector privado, de forma a conseguir construir um novo equilíbrio entre a fórmula europeia de investimento inicial público para I&D e o modelo norte-americano de envolvimento do sector privado como investidores. Cumprindo alguns destes desideratos, estou certo que a capacidade de inovação e de implementação de projectos concretos seria muito mais eficaz, menos dependente das grandes empresas, contribuindo assim para a criação de um ecossistema de matriz europeia sustentável, capacitado para competir e garantir a centralidade do velho continente, no novo mundo que se adivinha.
(uma versão anterior deste texto foi publicado pelo AICEP)