Não escrevi esta crónica com a intenção de fazer mais um texto para juntar aos rios de tinta que já se escreveram sobre a visita do Papa Francisco ao Chile entre os dias 15 e 18 de Janeiro passado. Sucede que depois de ler e comparar muito do que se escreveu de ambos lados do charco, de ouvir comentários na rádio e na televisão, cheguei à conclusão que o mais interessante nesta vista não é a visita em si, mas as várias leituras que dela se podem fazer.
Numa primeira leitura, a visita do Papa Francisco ao Chile parece ter sido a pior dos seus cinco anos de papado. Uma visita que ficou ensombrada por atos de violência, escândalos de abusos sexuais no seio da igreja, e pela baixa afluência dos fiéis aos atos celebrados durante a visita.
Bem sei que o saldo de 9 igrejas queimadas e 89 detidos chamam a atenção, mas para quem cá vive e como já tive oportunidade de escrever na crónica de Setembro, estas 9 igrejas somam-se às já 22 igrejas queimadas desde o início do ano. Não são uma especificidade desta visita papal, inserem-se no contexto de violência do conflito mapuche e de grupos radicais que se manifestam de forma violenta todos os anos por ocasião do Dia do Jovem Combatente e a cada 11 de Setembro. Faz-nos questionar a qualidade de uma democracia, mas não necessariamente o sucesso da visita de um Papa.
A comunicação social chilena concentrou-se sobretudo na polémica à volta do Bispo de Osorno Juan Barros a quem as vítimas dos abusos do sacerdote Fernando Karadima acusam de encobridor. Karadima foi julgado e condenado penalmente, tendo ainda sido afastado da igreja. Apesar do nome de Barros ter saído recorrentemente durante o julgamento a Karadima, este não foi até ao momento alvo de um processo autónomo. A sua posterior nomeação como Bispo de Osorno foi polémica e a sua presença em vários atos durante a visita papal foi mal vista pelas vítimas de Karadima, que esperavam do Papa Francisco uma posição mais veemente contra os abusos sexuais no seio da Igreja.
Muito se comparou a visita papal de João Paulo II em 1987 com a atual visita do Papa Francisco. 3.123.550 pessoas foram ver João Paulo II durante os seis dias que visitou o Chile em 87, contra apenas 1.500.000 pessoas que assistiram aos atos celebrados pelo Papa Francisco nestes quatro dias de visita ao Chile.
A imprensa europeia fez a leitura de que o catolicismo se manifesta com mais força nas zonas mais pobres e que inversamente a vai perdendo à medida que a situação económica dos países melhora, como no caso do Chile. De acordo com um inquérito regional (o Latinobarómetro), apenas 44% dos chilenos se declara católico, contra 73% dos seus vizinhos peruanos, ou 89% dos paraguaios.
Segundo o jornal chileno El Mercurio, em 1987 cerca de 70% da população chilena era católica, contra apenas 59% no Chile atual. Mais números e mais percentagens… o Chile atual é obviamente muito diferente do Chile de 1987, ainda sob o Regime Militar, isolado internacionalmente e que ninguém vinha visitar (as primeiras eleições democráticas que permitiram fazer a transição da ditadura de Pinochet tiveram lugar em 1990). O texto mais surpreendente que tive a oportunidade de ler sobre esta visita papal foi o de um sacerdote jesuíta; Felipe Berríos, em que dizia que entre as duas visitas papais, esta, a do Papa Francisco tinha sido a verdadeira visita. A outra, dizia ele, tinha sido uma coisa protocolar e (wait for it...) com cheiro a naftalina. Ouch!
É afinal possível fazer outra leitura da desconexão do público com o Papa, não tanto pelos que hoje se declaram ateus, mas precisamente pela desconexão que parece haver entre este Papa e esta Igreja por ele proposta e uma parte dos tais 50% que ainda se declaram católicos. Uma das críticas mais recorrentes que se ouvia na rua (e nas caixas de comentários!!) relativamente à figura do Papa Francisco, sobretudo quando o tema é a sua Argentina natal, é de que ele tem uma posição política definida e não a esconde…e isto era quase sempre dito num tom como se o que realmente estivessem a querer dizer fosse: “olha que grande esquerdalho!”. Na América Latina a sociedade é muito polarizada e parece que todos têm de escolher um bando…
Convém aqui relembrar dois episódios anedóticos. Um em 1992, já em democracia, quando a igreja católica no Chile conseguiu impedir a atuação no país do grupo de heavy metal Iron Maiden por atentarem contra os valores cristãos dos chilenos. O outro episódio é recente. Dias antes do início da visita papal, o presidente da Câmara dos Deputados, Fidel Espinoza, propôs adiar a discussão do projeto de lei sobre identidade de género por considerar que o mesmo era “de alta sensibilidade” para la Igreja. Tal como há várias leituras da realidade, também é certo que existem várias igrejas dentro da igreja. Suponho que o senhor Espinoza pretendia com isto não ofender aquela parte da Igreja e da sociedade mais preocupadas com as batalhas contra o aborto, os contracetivos, a identidade de género, o casamento homossexual do que com as questões de justiça social que têm sido uma preocupação constante deste papado. A agenda do Papa Francisco no Chile foi coerente com essa visão. No decurso da visita abordou temas de exclusão social (visitou uma prisão de mulheres), da importância de estender pontes (visitou a Araucanía e abordou o conflito mapuche), falou de acolher o outro e da dignidade humana (visitou o norte do país onde a crise migratória é mais visível). Temas cuja discussão é necessária e atual no Chile. Só por isso a visita deveria ser considerada um sucesso!
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 10 meses aproximadamente…
Nas notícias por aqui: Depois da visita do Papa, voltámos ao futebol. Alexis Sanchez, o tocopillano, vai jogar no Manchester United.
Sabia que por cá… se vai ao teatro em Buenos Aires. Nesta época do ano é comum ver anúncios nos jornais nacionais para a temporada de teatro na capital do país vizinho.
Um número surpreendente: foram utilizados um total de 134 veículos da marca Hyundai nesta vista do Papa Francisco ao Chile. No passado dia 23 de Janeiro, havia já reservas de interessados em comprar 88 desses 134 veículos.