Toca sempre à porta antes de entrar. A Irene tem chave mas gosta de se fazer anunciar, não vá apanhar alguém em trajes menores. Parece tímida, mas se puxamos pela conversa, aqui vai disto. Veio da Madeira há mais de vinte anos, já criou duas filhas em Londres e está a descobrir as alegrias de ser avó. “Acho que o hoover está a avariado, ou então é esta socket da escada que está desligada”. Perceber à primeira o que diz a Irene é uma constante visita ao tradutor do telemóvel. O Português que nos entra pela porta todas as segundas-feiras faz-nos sentir mais em casa, mas ao mesmo tempo o Inglês com que alterna as frases faz-nos ter a certeza de sermos emigrantes.
Conheci a Irene no dia em que me mudei para a casa onde estamos a viver, num bairro calmo no sudoeste de Londres. Estava a descarregar móveis do camião tir que tinha acabado de chegar de Lisboa e insultava o mundo alto e a bom som – um engano no seguro fez com que o motorista se recusasse a deixar o “carregamento” dentro de casa – quando ouvi o meu nome. Vinha para a “entrevista”. Dois minutos depois já estava a carregar cómodas e cadeiras escada acima. Apesar do seu pouco mais que metro e cinquenta, a Irene carrega móveis como se fossem penas. Já eu ainda sofro das sequelas desse dia. Não fosse eu preguiçoso já tinha ido à consulta do osteopata Português que me recomendou quando me ouviu a gemer agarrado às “cruzes”.
Com o passar do tempo, fui percebendo que a Irene é um poço de contactos e informações. Sabe tudo, opina sobre quase tudo e termina invariavelmente as frases com um expedito “yé, yé”. Tem um cargo de liderança num dos grupos de folclore que tem “saudade” ou “tradição” no nome e promove alguns encontros em Oval, um dos bairros do Sul de Londres onde os tradicionais Pubs começam a dar lugar aos cafés “Estrela”, aos supermercados “Madeira” ou à Casa do Benfica. Convida-nos sempre para os eventos do seu grupo onde já dançámos ao som de uma batida bem portuguesa numa cave de uma escola em Stockwell, com direito a lugar marcado na mesa ao lado da pista e do DJ Jorge Manuel. Nesse dia, subiu ao palco em traje de gala para agradecer a presença de todos e apresentar o Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, de visita a Londres.
Quando, por alturas do Natal, abrimos as portas ao filho de uns amigos da Terra que se instalou em nossa casa durante umas semanas, a Irene apressou-se a recomendar um amigo Português para o ajudar a tratar da papelada. Um processo que parecia uma empreitada difícil para quem tinha acabado de aterrar deixou de ser motivo de preocupação. Mais tarde, quando a Primavera chegou (será que alguma vez chegou!?), foi o Sr. Vasco quem veio ao meu auxilio para tentar ajudar-me a desbastar a selva em que se tinham transformado os nossos muito poucos metros quadrados de jardim. E que bom que foi poder explicar que queria simplesmente cortar as sebes sem ter que correr o risco de dizer alguma calinada em inglês e acabar com a roseira depenada – a minha primeira conversa com um jardineiro britânico tinha sido digna de registo e acabara em desistência.
Já para não falar do Peter Nunes, esse grande homem do Funchal que trouxe alegria a todos os membros da família. Agora há novelas da Globo para a mãe, Benfica a toda a hora para os filhos, notícias às oito para o pai e Inspector Max aos sábados de manhã para o mais novo.
Recomendámos a Irene a várias pessoas. “What goes around, comes around”, já dizia o outro. Hoje em dia reparte a semana entre a nossa casa e a de outros amigos que também fazem parte da nossa família Inglesa. Por seu lado, as suas recomendações e lista telefónica têm dado muito jeito tanto a quem já criou raízes na capital Britânica como a quem está ainda a descarregar as palettes do camião. Criou-se uma comunidade dentro da imensidão de Londres, onde o companheirismo, a reciprocidade, o amparo não conhece idades, classes ou manias. Ajuda – desinteressada – é a palavra de ordem porque, como diz a própria, “eu também já fui nova aqui e sei que as pessoas precisam de auxílio para se sentirem mais em casa”. E é verdade. Sem esse empurrão, muito provavelmente não conheceríamos o bairro que muitos apelidam de “Little Portugal” no Sul de Londres, não conseguiriamos dar os conselhos que já damos a quem chega pela primeira vez à ilha e certamente não teríamos dançado ao som do “Apita o Comboio” num frio e chuvoso sábado Londrino. Sem esse empurrão, dificilmente nos sentiríamos em casa.
Oiço-a a descer as escadas. “Vou voltar a por o hoover no cabard (cupboard, mas com pronúncia de fusão). Não me parece que este tenha safa”. Até segunda, Irene. “yé, yé”, responde, ao sair.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: estou cá, mas quando cheguei não vinha a Portugal há quase 100 dias
Nas notícias por aqui: medalha de ouro e de prata para Inglaterra na natação nos Jogos Olímpicos, medalha nenhuma para o partido Trabalhista que está a desmoronar-se
Sabia que por cá… somos mais de 30 mil portugueses (só em Londres)?
Um número surpreendente: 1 libra já só vale 1,17 euros. Estará na hora de voltar?