Foi o grande poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) que escreveu o seguinte: “Não consigo imaginar conhecimento mais ditoso do que este: todos temos de tornar-nos iniciadores. Alguém que escreve a primeira palavra a seguir a um travessão secular.”
Insisto: a História evolutiva da Humanidade aponta para um longo caminho de melhoria das condições de vida individual, familiar, social. Um trajeto agitado, por vezes feito de avanços e recuos, estagnações e desvios; mas, apesar de tudo, sempre a olhar para diante. A tradução possível do desígnio humano de conseguir fazer hoje melhor do que ontem, um pouco menos do que amanhã.
Foi Hannah Arendt (1906-1975) que introduziu, no final do século XX, o conceito de “amor mundi” como disposição do ser humano para a convivência, a ligação com o outro através do respeito e da valorização da diferença, a necessidade de criação e desenvolvimento de um sentimento de pertença, sinal alargado de responsabilidade pelo mundo de que todos fazemos parte.
Em contraste, deixamo-nos tomar sem reflexão por casos ou situações que diariamente vamos conhecendo como parte inesperada da realidade envolvente, onde parece emergir o oposto do que desejaríamos. Há não muito tempo, o País parece ter dado um sobressalto quando foi alertado para a existência de “um jovem terrorista” que desejava levar a cabo um “atentado na Universidade de Lisboa”. Pelo lado errado, João tornou-se notícia de primeiras páginas como sinónimo da bestialidade humana; a possibilidade de, indiferentemente do sofrimento dos outros, fazer mal ao seu semelhante, de forma indistinta e “sem razão aparente”.
Faltaram dados para outras análises. Não se evocaram causas ou trajetos evolutivos de não integração, exclusão social de um “psychotic nerd”, como aparentemente se descrevia, falha de capacidade adaptativa (afinal, tinha mudado de cidade e de referências há bem pouco tempo), resposta de desarmonia para lidar com a tensão emocional de novos e diferentes desafios: a universidade, os exames à porta. Através de um diagnóstico precoce de síndrome de Asperger, fizeram-se ligações erradas com um quadro clínico do espectro do autismo, caracterizado pelo predomínio de dificuldades de relação e de comunicação com traços de personalidade border line, numa linha esquizoide em que todo o sofrimento mental interior acaba por ser projetado para o outro, de forma inespecífica e aleatória. Não interessa quem poderia ou não morrer; matar seria a triste saída psíquica para o que o pedopsiquiatra norte-americano James Garbarino designou, há duas décadas, como “pensamento terminal” aquele em que não existe já o sentimento da possibilidade de ajuda (helplessness) e de esperança (hopelessness)
Garbarino é autor de vários livros importantes nesta área, sendo impossível não destacar Lost Boys. Nesta obra, é feita uma análise psicológica detalhada de vários autores de massacres levados a cabo em escolas dos Estados Unidos da América, na viragem do século, com especial destaque para o que aconteceu em Columbine, em abril de 1999, ataque de que resultaram 15 mortos, incluindo os dois jovens atiradores que depois se suicidaram. Sobre Columbine, a desarmonia que ele evoca, tal como a total ausência de esperança em si e no outro, também surge em Gus van Sant, que realizou o famoso filme Elephant (2003): imagens brutais, onde é constante a ausência do plano de adultos e da sua função de contenção dos mais novos, onde nem o som da sonata Ao Luar, de Beethoven, embala os mais tristes e desesperantes sentimentos.
Pobre João. Pobres de todos quantos perderam algures, no seu trajeto de vida tão jovem, a noção de amor por si, pelo outro, pelo mundo em geral. É por esses que temos de ser iniciadores, podendo até relembrar diariamente a inscrição de um anel encontrado na lama do rio Tamisa, datado do século XV, em que ainda é possível ler-se: “I LIVE IN HOPE X”.
Baseado em Harmonia: Roteiro Para um Bem-Estar Emocional, de Pedro Strecht, com desenhos de Álvaro Siza Vieira (Contraponto)
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