A sociedade é “uma parceria entre os que estão vivos, os que estão mortos e os que vão nascer”. A frase de Edmund Burke, pensador admirado tanto por liberais como por conservadores, foi pronunciada à luz da Revolução Francesa e resume bem o compromisso social e a anatomia do poder que se lhe seguiu. Na verdade, a sua acuidade perdura até aos dias de hoje. Como seres humanos organizados em sociedade, somos responsáveis por honrar o legado dos que contribuíram para aqui chegarmos, por nos organizarmos o melhor possível para satisfazer as necessidades dos presentes e por antecipar e respeitar as das gerações vindouras.
A organização social assenta numa tentativa de conciliação de interesses – interesses privados e coletivos, interesses que vêm de trás e existirão adiante, interesses locais e globais. Testaram-se várias soluções para se alcançar esta conciliação, e nenhumas provaram ser melhores do que a democracia e o capitalismo – apesar de todos os seus muitos vícios e fraquezas. Une-nos uma esperança coletiva no bem comum, a ideia de que juntos e organizados, com uma dose elevada de liberdade e responsabilidade, conseguimos uma vida melhor. A ideia de vida boa (que Mariana Mortágua captou bem como slogan de marketing político, embora discorde de alguns caminhos que defende para lá chegar) faz parte da essência do novo contrato social.
Porém, esta esperança no bem comum está, por estes dias, em risco em várias frentes. Desde logo, com a ameaça das democracias ditas liberais e o crescimento dos autoritarismos nas últimas duas décadas. Como bem explica Martin Wolf, analista e economista chefe do Financial Times, no seu último livro The Crisis of Democratic Capitalism, a nossas economias desestabilizaram a política, e vice-versa. Já não somos capazes de combinar as operações da economia de mercado com os valores das democracias liberais estáveis, e grande parte da culpa assenta no facto de a economia já não entregar a segurança e a prosperidade abrangente que grande parte da sociedade aspira. Vivemos pior do que imaginávamos há 15 ou 20 anos. Em muitas famílias de países desenvolvidos, há filhos em idade ativa que vivem pior do que os pais, sem perspetivas de melhorias adiante.
O primeiro sintoma deste desapontamento económico transversal é a descrença generalizada na competência e nas boas intenções das elites. Fukuyama, ao emendar a mão à ideia de “fim da história” que proclamou em 1992, chamou-lhe ressentimento, um sentimento poderoso que insta ao conflito. Simultaneamente causa e consequência, a Europa, os Estados Unidos da América e outras partes do globo onde a ideia de democracia e de Estado de direito parecia mais ou menos consolidada estão a braços com o crescimento das políticas identitárias disruptivas, com a crise das instituições e com o autoritarismo e o populismo, tanto de esquerda como de direita. Um clima de revolta e de raiva que as redes sociais e os seus algoritmos incendiários potenciam.
Wolf argumenta que é preciso uma reforma da relação entre as políticas democráticas e a economia de mercado, que não é apenas motivada por tensões domésticas, mas também pelo crescimento mundial das autocracias mundiais, como a China e a Rússia. Só há uma resposta: as nações ocidentais têm de melhorar a sua performance social, política e económica. A democracia e o capitalismo perderam a sua legitimidade natural – e é preciso reconquistá-la. Porque perdida a esperança pelo bem comum que serve de cola, o caminho segue em rampa deslizante para o abismo.
É essencial fazer um longo caminho de compensação, para que a tal aspiração seja retomada. A melhor forma de combater o ressentimento e os populismos que dele se alimentam é não lhes dar carburantes. É preciso restaurar a fé na democracia e no capitalismo com melhorias concretas – não bastam promessas e vagas intenções. A nova cidadania exige uma vida boa. Exige elites mais competentes. Exige Justiça veloz, Saúde eficiente, Educação aspiracional. Neste processo, as preocupações não podem ser apenas económicas – têm de ser também ambientais. Não é possível falar de economia, a médio e longo prazo, sem levar em conta a urgência da sustentabilidade.
É esta a enorme responsabilidade que os políticos têm às costas e precisam de estar à altura de a desempenhar: não basta governar, é preciso restaurar a fé no sistema. Para que, como pedia Abraham Lincoln, “o governo do povo, pelo povo e para o povo, jamais desapareça da face da Terra”.
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