Durante a apresentação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica Portuguesa, a 13 de fevereiro, houve muitas pessoas que desligaram as televisões e os rádios, porque já não conseguiam continuar a suportar, em direto, o desfilar de horrores que iam sendo reproduzidos. Mais do que a dimensão do número de abusados e de agressores, o que mais chocou, então, a maioria dos portugueses foi a leitura dos testemunhos, em que as vítimas descreveram, com minúcia, o seu sofrimento. Os relatos em que, de forma absolutamente crua, mas factual, elas contavam como tinham sido aliciadas, manipuladas, violentadas e, no final, abandonadas sozinhas à culpa, à vergonha e a um sentimento de injustiça que as acompanhou para o resto das suas vidas. Os testemunhos eram chocantes, não só pelo que representavam individualmente mas também por se perceber que constituíam apenas uma pequena amostra de uma realidade infinitamente mais vasta. E a sua leitura, mesmo ultrapassando o limite do suportável para alguns, foi necessária para obrigar a sociedade portuguesa a confrontar-se com a verdadeira dimensão de uma realidade ocultada durante décadas, mas que todos sabiam existir: a monstruosidade permanente de abusos a menores no seio das instituições da Igreja Católica, com o encobrimento da sua hierarquia.
Ao contrário dos portugueses que, horrorizados com o que iam ouvindo, foram mudando de canal, os bispos portugueses assistiram serenamente a tudo, sem interrupções, nas primeiras filas do auditório. Alguns, pela especulação que permitem as imagens televisivas, podem ter cedido temporariamente ao sono ou ao cansaço, mas é inegável que estiveram lá o tempo todo. E, a seguir, receberam também o relatório completo, acompanhado da lista e das descrições de todos os padres que a comissão independente identificou como abusadores. Após três semanas de alegada reflexão, e quando grande parte do País esperava um sonoro mea culpa, e, no mínimo, um plano de ação para castigar os abusadores e apoiar as vítimas, a Conferência Episcopal Portuguesa limitou-se a apresentar um pífio e quase rotineiro pedido de desculpas, despido de qualquer tipo de emoção. Pior ainda, o Cardeal Patriarca acabou por desvalorizar na prática o trabalho da comissão independente, considerando que a mesma só lhe tinha entregue uma “lista de nomes” e que, portanto, não tinha dados para poder avançar com qualquer suspensão, escudando-se até em considerações jurídicas elementares para justificar a sua inação.
Desta maneira, a resposta da hierarquia da Igreja Católica portuguesa conseguiu ser ainda mais revoltante do que os relatos das vítimas, que tanto chocaram o País. Até porque não foi uma resposta a quente. Muito pelo contrário: foi ponderada e refletida, porventura friamente, durante três semanas. Com o resultado a que se assistiu: perante a vergonha que atravessou a Igreja, após a divulgação do relatório, a Conferência Episcopal respondeu com a mais completa falta de… vergonha. Preferiu continuar a insistir na opacidade e numa cultura de ocultação inadmissível perante um caso com esta dimensão. A sua recusa reiterada em não suspender de imediato os padres suspeitos, a persistência em negar qualquer tipo de indemnização às vítimas e a ausência de quaisquer garantias imediatas para que este tipo de crimes não se volte a repetir são bem reveladores de que o problema dos abusos sexuais a menores na Igreja não pode ser resolvido por essa mesma Igreja. A posição tomada pelos principais responsáveis da hierarquia aniquilou qualquer margem de tolerância que ainda pudesse existir sobre a sua capacidade para atuar, punir e prevenir.
Os crimes são demasiado graves para continuarem a ser ignorados. A Comissão Independente identificou mais de uma centena de alegados abusadores que ainda continuam no ativo. Há milhares de vítimas que merecem apoio e indemnização, como, aliás, já aconteceu noutros países, onde, como também sabemos, os casos só foram conhecidos devido ao trabalho de jornalistas ou de outras comissões independentes – quase nunca por iniciativa dos bispos. É preciso que esta autêntica tragédia deixe de ser tratada como se fosse um assunto interno da Igreja ou que apenas diga respeito aos católicos. A Igreja não pode continuar a comportar-se como um estado dentro do Estado. Chegou a hora do Estado – laico! – agir.
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