Em 46 anos, a Constituição da República Portuguesa teve apenas sete alterações: quatro mais substanciais, no século passado, que diminuíram o seu peso ideológico, alteraram o modelo económico subjacente e abriram caminho para a União Europeia, às quais se somaram apenas três de menor impacto no século XXI, feitas até 2005. Em 2010, o PSD tentou abrir o processo, mas a dissolução da Assembleia da República ditou o fracasso da tentativa. Há 17 anos, portanto, que a Assembleia da República, órgão com competência exclusiva para legislar nesta matéria, por falta de consenso alargado, timing ou vontade política, não mexe no texto da lei fundamental.
O Chega, pela sua natureza barulhenta, já por duas vezes tentou fazer acontecer revisões constitucionais. Apresentado um projeto de revisão constitucional, quaisquer outros terão de ser anunciados no prazo de 30 dias, para ser constituída uma Comissão Eventual de Revisão Constitucional. Da primeira, apenas a IL se juntou, agora o PSD anunciou avançar, e todos os partidos decidiram ir a jogo.
A Constituição, como lei basilar do ordenamento jurídico nacional, deve ser mexida com muito cuidado e parcimónia, de forma a pairar sobre programas eleitorais, tendências conjunturais e visões parcelares do País, assegurando-lhe longevidade, pluralidade e confiança estruturante. Passando por cima da questão de princípio – nada despicienda em matéria constitucional – de irem a reboque de uma iniciativa de um partido que deseja instaurar a quarta república em Portugal, PS e PSD, sem o acordo dos quais não se conseguem aprovar alterações constitucionais, decidem abrir agora um processo que é complexo e de enorme responsabilidade.
Mesmo com o péssimo timing identificado por quase todos – um quadro geral de incerteza determinado pela guerra, inflação galopante, crise económica à espreita e Orçamento do Estado para 2023 em fase de discussão na especialidade –, tivesse a coisa sido devidamente balizada, discutida e ponderada, compreendia-se. Só que não é nada claro que assim seja.
Em maio, o primeiro-ministro abriu a possibilidade de uma “revisão constitucional cirúrgica”, por causa da lei dos metadados, chumbada pelo Tribunal Constitucional, à qual se junta a necessidade de uma nova Lei de Emergência Sanitária. Só que o que foi colocado em cima da mesa não só não é cirúrgico, ou seja, limitado a estas duas questões, como os deputados socialistas e sociais-democratas se queixaram de ser completamente marginalizados e excluídos do processo. Nas duas comissões políticas, o tema foi tudo menos consensual e gerou desconforto e contestação interna.
E o que diz o Presidente da República, professor de Direito Constitucional, por lei obrigado a promulgar as alterações, que em maio disse que a revisão era uma ideia “problemática”, mas que vai deixando cair a necessidade dela em matéria de emergências sanitárias? Marcelo Rebelo de Sousa tem especial apreço sobre o tema e também um histórico na matéria. Quando era líder do PSD, fintou os deputados e fez, em 1977, uma revisão constitucional previamente negociada fora do Parlamento com o PS, então liderado por António Guterres. O objetivo, diria mais tarde, era manter conversações “com quietude, discrição e imunidade à comunicação social e às pressões externas”. Fins que justificam os meios, diria Maquiavel. Em todo o caso, são condições que não se antecipam agora.
Há, pois, uma espécie de fuga para a frente: o momento é péssimo, ninguém se entende, mas é tudo uma questão de “oportunidade”: uma vez aberto o processo, é para avançar, sem medos, para uma revisão alargada. Em cima do joelho, temem vários juristas e constitucionalistas, ainda por cima quando estão em causa restrições a direitos fundamentais. E, se a pressa é sempre má conselheira, em matéria legislativa que envolva a Constituição, ainda mais.
Olhando para as propostas apresentadas, há de tudo: algumas ideias razoáveis (decisão de isolamento e acesso a metadados por serviços de informação, ambos apenas por decisão judicial; recurso de amparo para o Tribunal Constitucional), mas muitas ideias vagas (justiça intergeracional; saúde ambiental; sistema efetivo de proteção do ambiente; democracia liberal), ideias polémicas (redução do número de deputados; mandato único para a Presidência, voto aos 16 anos de idade; défice zero e limite ao endividamento público), ideias estapafúrdias (conceito de “uma só saúde”, humana e animal), ideias materialmente inconstitucionais, que ultrapassam os limites definidos pela própria Constituição (prisão perpétua e castração química). O que sairá, no fim do processo, dependerá dos entendimentos a que PS e PSD consigam chegar – para jogar este jogo são precisos 154 deputados.
Os dados já estão lançados. Num contexto com muito por onde correr mal. Haja agora, no mínimo, moderação, sensibilidade e bom senso para prosseguir.
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