O abismo marcou a última década brasileira, numa vertigem de corrupção sistémica, instabilidade política, golpes à democracia, caos sanitário, polarização, ódio. Quando, no domingo à noite, o Tribunal Superior Eleitoral confirmou o resultado das eleições no Brasil, meio país suspirou de alívio, a outra metade bradou de revolta. Ficou consumada uma vitória histórica com muitas “primeiras vezes”. Lula da Silva, com 77 anos, é o presidente mais velho eleito, teve a menor margem face ao concorrente desde o fim da ditadura militar, consegue um terceiro mandato, algo que nunca tinha acontecido, da mesma forma que um Presidente em funções falha de forma inédita a sua reeleição.
A excecionalidade deste processo eleitoral em tudo dramático não se fica por aqui. Lula da Silva traz um histórico de progresso económico conquistado (triplicou o PIB per capita e colocou o Brasil entre as mais fortes potências emergentes), mas é eleito depois de ter passado 580 dias na prisão, condenado num processo e acusado em vários outros que espelharam a captura do sistema judicial por manobras políticas. As decisões dos tribunais foram revertidas, mas deixaram dúvidas e mossas, em muitos casos, inultrapassáveis.
Sendo este o melhor candidato que o PT anquilosado tinha para apresentar, a polarização estava garantida. E neste pleito radical jogava-se também o tudo ou nada no resgate dos valores democráticos que Bolsonaro pôs em causa desde os primeiros dias no Planalto, com o seu discurso de ódio e populismo de extrema-direita, o autoritarismo, o militarismo e o nacionalismo, a tentativa de condicionar o sistema judicial e eleitoral, o desrespeito por direitos humanos fundamentais, o atentado contra o planeta na Amazónia, o negacionismo, a aproximação de autocratas como Trump ou Putin. Quem diz que entre os dois não há escolha possível fala mais sobre si próprio do que sobre os candidatos: deixa bem claro o nível de compromisso que tem com os valores democráticos.
Neste ambiente de entrincheiramento, votou-se nestas eleições mais “anti” do que “a favor”: muitos taparam os olhos e meteram a cruz em Lula da Silva, quase outros tantos deixaram-se levar pelo ódio visceral a Lula e ao petismo e deram um voto a Bolsonaro. Contados os votos e com o país dividido, o Brasil está agora num limbo de difícil saída.
Tal como o trumpismo não desapareceu com a derrota de Trump, o bolsonarismo está para durar. Mais de 58 milhões de pessoas depositaram a sua confiança em Bolsonaro, com pouco mais de 2 milhões de votos de diferença face a Lula, que foi eleito com o apoio de nove partidos. Se conseguir arregimentar estes apoios, chegará aos 43% no Congresso. Um fraco resultado se pensarmos que reuniu na sua candidatura um conjunto vasto de personalidades políticas, muitas mais à direita do que o PT se situa, a começar por Geraldo Alckmin, o competente ex-governador paulista que se espera que venha a ser vice-presidente. Perante a forte oposição, para conseguir governar tem de apanhar os partidos do “centrão”, que no Brasil oscila, de um lado para o outro, ao sabor das ofertas e conveniências. Nos governos estaduais, Bolsonaro venceu em muitos dos principais estados, como São Paulo ou Rio de Janeiro. A primeira prova de fogo será já negociar o próximo orçamento.
O Brasil é hoje um país partido ao meio, em que metade despreza a outra metade. Por mais apelos à união que Lula da Silva faça, a sua voz não chega longe. E, ao contrário de quando chegou pela primeira vez ao Planalto, com a economia a abrandar em 2023, terá pouca folga para distribuir dinheiro e aumentar apoios sociais. O Presidente Lula necessitará de pragmatismo e capacidade negocial para conseguir fazer alguma coisa. Mais do que isso: tem de unir o povo em torno de um novo projeto de país, acabar com a corrupção, apoiar uma classe média e dar dignidade a grande parte da população que vive abaixo do limiar da pobreza. Uma tarefa hercúlea.
A forma como Bolsonaro se comportar daqui para frente, sobretudo nos dois meses que medeiam até à tomada de posse, poderá fazer a diferença para o futuro do País. Mais do que reconhecer a derrota e não dar gás a quem quer impugnar os resultados, importa que se comporte com níveis mínimos de civilidade e cidadania para ajudar na transição de poder e no apaziguar de ânimos de que tanto o Brasil precisa. Não pode espalhar o ódio, não pode atirar mais achas para a fogueira do descontentamento. Mas isso, temo eu, é pedir demais deste homem sem qualidades.