Parece, cada vez mais, que habitamos em dois países diferentes. Num, visto de fora, somos uma nação fantástica para se viver, com bom clima, população simpática e acolhedora, ambiente geral tolerante e despreocupado, juventude cheia de dinamismo, grandes ideias a germinar e até resultados económicos recentes que conseguem surpreender a Europa e o mundo. Mas, depois, temos o outro país, aquele que já vimos de dentro, em que tudo – mas mesmo tudo! – parece correr mal, onde dificilmente se encontra alguém honesto ou sem uma agenda escondida, repleta de esquemas, compadrios e planos ocultos. E em que nada nem ninguém escapa, desde a política à economia, do futebol às instituições de solidariedade social. Qualquer equação que envolva as palavras negócios, subsídios e dinheiros públicos passa a reunir, imediatamente, todos os ingredientes para ser considerada sob suspeita. E depressa se começa a dar a mesma importância e relevância a uma série de termos do jargão judicial, mesmo que eles tenham significados diferentes: uma denúncia anónima passou a ser quase equiparada a uma acusação, qualquer irregularidade, mesmo que formal, agiganta-se logo para o estatuto de ilegalidade, e alguém acusado é, de imediato, visto como já um condenado, pelo menos, aos olhos da opinião pública.
Desculpem lá, mas é neste tipo de clima que nascem os populismos – bem como os “messianismos” para que Marcelo alertou no seu discurso do 25 de Abril. Quando deixamos de acreditar em nós e passamos a desconfiar de todos, ficamos, irremediavelmente, à mercê de quem possa aparecer com o velho discurso de que tem a solução para pôr o País “na ordem”, já que a perceção – de dentro, ao contrário da de fora – é a de que vivemos na maior desordem.
O grande problema é que passámos a olhar para as irregularidades, ilegalidades e para os vários níveis de corrupção sob o prisma dos novos alinhamentos dos serviços noticiosos dos canais de televisão ou do feed das redes sociais. Resultado: deixámos de ter uma hierarquia de assuntos alinhados pela sua importância e relevância. Já não existe a distinção entre o chamado “título garrafal” (como se dizia noutros tempos…) da primeira página do jornal e o da pequena notícia escondida numa página interior. Agora, quando começam a ser partilhados, ambos aparecem com a mesma dimensão e expressão no ecrã do smartphone – como se fossem os dois igualmente importantes, urgentes e relevantes.
Coletivamente, vamos construindo assim, aos poucos, a perceção de uma realidade que nos chega sem filtros, hierarquias ou enquadramento. Tudo parece ter relação com tudo, mesmo quando pode estar em realidades e dimensões opostas, sem qualquer ligação. Um dos efeitos perversos desta situação é o que se reflete na nossa perceção da corrupção. Habituámo-nos a viver com essa espécie de “nuvem negra” por cima: como se fosse normal chover todos os dias, sem distinguirmos a diferença entre o aguaceiro e a borrasca. A confundir a pequena “cunha” com os casos realmente graves. E, no fim, a encolher os ombros como se tudo fosse normal. E, ainda pior, sem castigo, como se tem visto desde o fax de Macau até às recentes descobertas sobre Manuel Pinho, passando pelos “casos” BPN, Banif, BES, Sócrates, submarinos, vistos gold e tantos outros de que só recordamos os nomes de código da investigação, mas que continuamos sem saber quais as verdadeiras consequências.
É assim que se semeiam os populismos, os quais, acredito, apenas se combatem com mais e maior transparência. E face às acusações que recaem sobre Manuel Pinho, um ministro da Economia com ligações diretas ao BES e à EDP, é importante perceber, realmente, o que pensam todos os dirigentes políticos sobre este caso. De forma direta e transparente. E em nome da democracia – porque casos como este não podem ser generalizados como se fossem normais, comuns e frequentes.
(Editorial da VISÃO 1313, de 3 de maio de 2018)