Pulcinello era um corcunda que não conseguia guardar um segredo – sabia muito e falava demais. A personagem da commedia dell’arte italiana do século XVI presente em muitas sátiras deu mais tarde nome aos segredos mal guardados. A ingenuidade de Pulcinello passou, com os tempos, a astúcia: a quebra do sigilo, ou o segredo de polichinelo, acontecia não apenas porque lhe era irreprimível mas porque servia a alguém.
O mesmo que se passa com o segredo de justiça, provavelmente o maior segredo de polichinelo de sempre. Todos os dias encontram-se notícias dos média de processos que estão, teoricamente, em segredo de justiça. Porque, na maioria das vezes, todos os dias os jornalistas fazem o seu trabalho e contam histórias de interesse público que importa dar a conhecer, salvaguardando os valores inalienáveis da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Onde encontram essa informação? Não tropeçam com toda a certeza nela ao virar da esquina: normalmente, chega-lhes através de partes interessadas na sua divulgação: seja o Ministério Público, as polícias de investigação, os advogados, os funcionários judiciais ou os próprios magistrados. E têm, como é evidente, o dever deontológico de salvaguardar as suas fontes.
O que acontece, sendo pública e notória a violação da lei que impõe o segredo de justiça? Quase nada, como esta semana reconheceu a procuradora-geral da República. Em quase três anos, foram abertos 111 inquéritos por violação do segredo de justiça, que resultaram em apenas cinco acusações, três das quais a jornalistas. É a velha história: mata-se o mensageiro em vez de quem enviou a missiva. Felizmente, a jurisprudência dominante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, com a qual a procuradora diz concordar, opta por fazer prevalecer “o valor da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa”, levando à absolvição. Joana Marques Vidal veio pedir um compromisso de todos que inclua o Ministério Público, “juízes, Polícia Judiciária e a sua direção, PSP e demais órgãos da polícia criminal, Ministério da Justiça e advogados”. Um compromisso reforçado por uma tentativa de meter trancas à porta: a Procuradoria-Geral da República comprou um programa informático de meio milhão de euros para travar a violação do segredo de justiça. O software, que vai substituir outro que custou mais de 1 milhão de euros e que nunca chegou a ser utilizado (longo suspiro), já está em testes e vai permitir rastrear quem tem acesso aos casos.
Resta saber se o segredo de justiça não é, afinal, um caso perdido. Os jornalistas continuarão a tentar fazer o seu trabalho; as partes envolvidas, se lhes for conveniente, continuarão a divulgar o que entenderem dos processos, fintando a lei e os softwares informáticos. E na maioria das vezes os arguidos, obrigados a um silêncio bacoco, continuarão a ser os mais prejudicados, não se podendo defender publicamente quando são feitos julgamentos sumários na praça pública.
O Presidente pediu, há mais de um ano, um Pacto de Justiça que envolva todos os intervenientes, e numa coisa parece que Rui Rio e António Costa concordam: o segredo de justiça, tal como está, não faz sentido. O que proporá o PSD? Em 2015, a ex-bastonária e atual vice-presidente do partido disse que a sua violação era um flagelo e lançou a deixa: “Se o Estado não tem capacidade para proteger o segredo de justiça então acabe-se com ele.” O novo líder parlamentar do PSD (enquanto resistir no cargo) tem também um passado ligado ao tema: em 1999, Fernando Negrão foi demitido de diretor da Polícia Judiciária por suspeitas de violar o segredo de justiça no caso Moderna. As suspeitas nunca chegaram a ser provadas, mas a imagem de ter passado a informação ao DN colou-se-lhe.
Uma lei permanentemente violada cai de podre. Será que vamos continuar a tentar parar o vento com as mãos e fingir que o segredo, nos dias de hoje, vale de alguma coisa quando há um Pulcinello a cada esquina?
(Editorial da VISÃO 1304, de 1 de março de 2018)