Incêndios. A palavra está queimada. O tema já está consumido, e no entanto… No entanto é assim todos os anos. E todos os anos se diz a mesma coisa. Se arde menos, encavalita-se o governo em funções, insinuando que assim se comprova que o esquema montado é mais eficaz que os anteriores; se as chamas se impõem, ataca a oposição e defende-se o governo com a ingratidão da meteorologia: ou choveu muito e produziu muita massa combustível ou choveu pouco e está tudo seco. Mas arde sempre, é sempre uma calamidade, há sempre imagens de terror e situações de pavor.
Este ano foi diferente. Até 8 de agosto, dizia o ministro do Ambiente que tinham ocorrido muitos fogos, mas que ardera menos que o previsto. Ele “não podia deixar de sublinhar aquilo que tem sido uma redução significativa da área ardida”, consequência da “grande capacidade para intervir, uma grande coordenação de meios, uma grande disponibilidade de quem está no terreno”, gabava-se João Matos Fernandes. Infelizmente, também se enganou sobre os bons resultados que anunciava para as áreas protegidas.
Três dias depois, a primeira página do Diário de Notícias assegurava que “ardeu mais na primeira semana de agosto do que nos anos anteriores”. O ministro queimou-se com os foguetes que lançou antes do fim da festa. Afinal, resta-lhe voltar a queixar-se de S. Pedro e a dizer que, apesar de todos os esforços, nada resulta. O mesmo que os seus antecessores.
Num precioso levantamento de textos publicados, Ricardo Marques, num dos seus Expressos Curtos, encontrou três exemplares “frases da época”: “Meios obsoletos e falta de legislação são cúmplices dos incendiários”; “O País assiste, impotente e perplexo, à progressiva destruição da sua imensa riqueza florestal”; e, finalmente, “Por mais meios que tenham (e serão sempre insuficientes), eles não permitirão colocar um vigilante junto de cada árvore, com equipamento de primeira intervenção, 24 horas por dia.” A primeira foi escrita há 39 anos, a segunda há 30, a terceira há 13. Podiam ser de ontem. Ou de amanhã.
Podíamos tentar consolar-nos dizendo que o problema é do aquecimento global, que todo o Sul da Europa sofre, que até nos EUA, Canadá e Austrália há grandes catástrofes. Não serve de desculpa. Segundo Pedro Almeida Vieira, um conhecido especialista em questões de ambiente, citando estatísticas europeias, até dia 12 tinham ardido 101,9 mil hectares em Portugal contra 24 mil em Espanha, 28,3 mil em Itália e 18,7 mil na Grécia. Então o problema não é a bacia do Mediterrâneo, nem o CO2 pode estar particularmente contra nós.
Nem é o “homem das barbas” que ateava fogos em 1975, a falta de quartéis modernos e eficazes até meados dos anos 80, a escassez de autotanques e a impreparação até aos anos 90 e outras desculpas de circunstância. Proibiram-se os foguetes, mas o arraial dos fogos não parou.
A incapacidade das políticas e estratégias oficiais resulta evidente, sendo que as propostas para minorar estes problemas são sempre as mesmas: falta planeamento florestal, não há combate às espécies desadequadas ao clima e território, o registo cadastral desatualizado impede a responsabilização dos proprietários pela limpeza das matas, é fraca a coordenação no combate e a repressão aos pirómanos, o despovoamento não para. O que explica que as críticas de hoje sejam as de há dezenas de anos e quem está no Poder – e já foram tantos e tão diversos – não as ouça? São inexequíveis? Podíamos ao menos copiar: Espanha tem quatro vezes mais floresta e, este ano, como é hábito, ardeu menos de um quarto da área queimada em Portugal.
Ou será que há uma condição prévia que ninguém quer ver e que condiciona todas as outras? Será que enquanto a atividade florestal não for suficientemente rentável não haverá quem a queira defender? É bom recordar que o pinhal começou por ser o investimento dos pobres: quando juntavam umas moedas com a venda do porco, compravam uns pinheiritos, e quando era preciso ir ao médico ou casar um filho cortavam-se alguns. Da floresta dependem muitos, mas poucos poderosos.
Quando atravessamos uma época em que a coluna do deve está sempre a ser comparada com a do haver, em que pensar o futuro é desperdício, o que não é premente esquece. E ser premente é ser politicamente determinante. E a floresta, como se vê, não o é.