Nos últimos dias, a depressão Cláudia deixou marcas profundas em vários tribunais de norte a sul do País. De imediato, multiplicaram-se as notícias de edifícios que, literalmente, “meteram água”. Seria cómico se não fosse trágico, desde logo porque o que está em causa é, na verdade, um problema estrutural muito sério, antigo e repetidamente denunciado.
Tendo tido notícia de múltiplos danos ocorridos nos tribunais e que puseram em causa a sua operacionalidade, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) reagiu, repetindo o que têm vindo a repetir há anos: as condições de trabalho em inúmeros edifícios judiciais são indignas, inseguras e incompatíveis com o funcionamento moderno de um serviço essencial do Estado. Mais do que isso, são fruto de um abandono prolongado que decorre das opções deliberadas de sucessivos governos.
Nesta sequência, o Governo prontificou-se a afirmar que está “alinhado” com a ASJP. É uma boa notícia — em teoria. Mas, como em quase tudo no domínio da Justiça, a questão não está nas palavras, mas no percurso que as deve seguir. Se realmente existe alinhamento, então que se demonstre na prática qual o grau de compromisso que se está disposto a assumir. Porque aquilo que aconteceu com a depressão Cláudia não é um acidente isolado: é apenas o episódio mais visível de um problema estrutural, diagnosticado há muito, ignorado demasiadas vezes e que, com grande grau de probabilidade, passará sem sobressaltos pela espuma dos dias.
Quem trabalha nos tribunais há anos sabe bem que o estado das instalações não é uma preocupação nova. Bastaria atentar nos relatórios anuais das Comarcas — documentos oficiais, extensos e tecnicamente sólidos — para facilmente se identificar falhas graves em edifícios de todo o País. Infiltrações, sistemas elétricos obsoletos, ausência de planos de evacuação funcionais, degradação de paredes e tetos, problemas de climatização que tornam impossível trabalhar em segurança ou com o mínimo conforto. Tudo isto é conhecido, mapeado e comunicado. E tudo isto foi, durante anos, relativizado.
Importa que recordemos sempre que a Justiça se exerce em nome do Povo e que os Tribunais são feitos para servir as pessoas, para aplicar a Lei, proteger os direitos e resolver os conflitos. Se chove num tribunal a cada sopro de inverno sem que se garantam condições mínimas de dignidade para o funcionamento de um órgão de soberania, estamos perante mais um sinal preocupante de alheamento, senão de falência, do Estado. A dignidade do tribunal — enquanto instituição e enquanto espaço público onde se exerce autoridade — depende também, inevitavelmente, da dignidade do seu espaço físico.
Mas o problema não se resume a paredes. A segurança — de magistrados, funcionários e cidadãos — tem sido, há demasiado tempo, um ponto cego. Há poucas semanas assistimos à agressão a uma procuradora em Coimbra, num episódio que deveria ter chocado e feito soar campainhas. Esse, aliás, não é caso único, sucedendo-se a outros que vão ocorrendo, sem que os tribunais ou DIAP sejam dotados dos correspondentes mecanismos de proteção. A violência dirigida a quem exerce funções no sistema de Justiça não pode ser normalizada. E, no entanto, as soluções estruturais continuam adiadas: falta vigilância adequada, falta controlo de acessos eficiente, faltam protocolos uniformes e falta capacidade de resposta para situações de risco. A Justiça não pode exigir – como também já sucedeu – coragem física aos seus profissionais para desempenharem funções que deveriam estar protegidas pelo Estado. E não é por falta de estudos, relatórios ou propostas que a situação se mantém. O diagnóstico está feito há anos, repetida e insistentemente.
As magistraturas — ao contrário do que esta semana foi afirmado por um antigo deputado — têm sido motores de propostas e não obstáculos à reforma. São inúmeras as iniciativas e sugestões apresentadas pelas organizações representativas, pelos Conselhos Superiores e pelos profissionais no terreno. E, apesar disso, continuamos, por exemplo, com um parque informático obsoleto, incapaz de acompanhar as exigências da justiça digital. Os sistemas em uso são manifestamente lentos, falham, bloqueiam e, não raro, impossibilitam o normal funcionamento das audiências. Outras vezes tornam tarefas básicas penosas e improdutivas. Em grande parte, isto deve-se também às estruturas do Ministério da Justiça que deveriam garantir o bom funcionamento dos respetivos recursos patrimoniais, financeiros e tecnológicos que, tal como estão, não asseguram respostas atempadas nem soluções tecnológicas compatíveis com a realidade do século XXI. A Justiça não pode depender de plataformas envelhecidas e de intervenções técnicas que tardam ou nunca chegam.
Perante tudo isto, voltar à resposta do Governo é inevitável. Se há alinhamento, então que ele se transforme em execução política concreta. É tempo de deixar de lado a habitual retórica nestas situações e de assegurar aos tribunais edifícios seguros e adequados, capazes de resistir não apenas a tempestades, mas ao quotidiano de trabalho e de afluência de milhares de profissionais e cidadãos; é tempo de garantir condições de segurança efetivas, para que ninguém tema entrar numa sala de audiências e é tempo modernizar os sistemas e recursos informáticos, permitindo que se possa trabalhar com eficiência e previsibilidade. Até vermos avanços concretos nestas matérias, fica no ar se o alinhamento proclamado pelo Governo corresponde a uma vontade de ação ou apenas a uma mera frase de conveniência.
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