“O Marco, que se portava mal e estudava à revelia, levava coças da professora. Chegava sempre arreliado, barafustando contra tudo. Contava-me como era. Batia-se nos alunos com a mão aberta no rosto, as costas da mão no rosto, os nós dos dedos na nuca, a cana por trás das orelhas, a régua na palma da mão. Batia-se nas crianças para castigá-las da infância e urgir que fossem adultas.”
Walter Hugo Mãe em Contra mim
Muito se tem falado de uma suposta transformação geracional que estará a ter consequências no mercado de trabalho: aparentemente, as gerações mais novas estarão com falta de vontade/capacidade para fazer certos sacrifícios no cumprimento dos seus trabalhos, algo que a pandemia terá vindo agravar.
Uso o condicional porque ainda faltam dados e tempo para se poder concluir que tal transformação geracional realmente ocorreu. Porém, há algo que é certo e vale a pena discutir: a análise moral que se faz dessa suposta transformação. E, aí, sim, começa a ficar claro que há cada vez mais gente a discordar do modus operandi tradicional e da noção que a vida fez-se para ser sacrificada em nome do trabalho.
Perante a tal oposição que as gerações mais novas terão à disciplina militar transposta para o mundo laboral, muitos dos que foram educados nessa lógica do obedecer porque sim, fazer porque se tem medo de quem manda e da desgraça do desemprego, olham para as novas gerações com desprezo (ou com inveja e mesquinho desejo de perpetuar sofrimentos?). Dizem que são uns flocos de neve prontos a desfazerem-se às primeiras contrariedades ou exigências acrescidas. Desafazerem-se porque deprimem, porque têm ataques de pânico e de ansiedade ou porque fogem desses trabalhos para não mais voltar. O julgamento moral dita que tais pessoas não estão preparadas para a vida adulta, são umas fracas e incapazes. Afinal, se não são capazes de passar noites sem dormir para cumprir prazos, aguentar berros das chefias quando estas não estão apaziguadas (quais deuses enfurecidos), ou aceitar parcos pagamentos porque, enfim, ainda estão a aprender e mais não merecem, nunca ganharão a vida.
A esta leitura conservadora, pode contrapor-se uma mais emancipadora: é que as gerações mais novas já não foram educadas na violência e já não a suportam (hoje, um professor que bata nos alunos tem um processo disciplinar, pais que o façam aos filhos correm o riso de a CPCJ lhes bater à porta) e que o caminho será acabar com a cultura da violência, da subserviência e do sacrifício em nome da autoridade.
As gerações mais novas confrontam-se com um mundo incerto que lhes oferece precariedade e falta de esperança. Se lhes adicionamos despotismo e sacrifício, vira penitência.
É muito salutar que as gerações mais novas sintam que a vida é curta, que “navegar é preciso”, que a felicidade é o bem maior. O trabalho continuará por cá, a ter que ser feito. Mas é bom que lhe mudemos as regras, que todos, mais novos e mais velhos, ficaremos melhor.
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