Todas as épocas extraordinárias servem, para o bem e para o mal, para mostrar o que há de melhor e de pior no ser humano. Desde que a pandemia tomou conta do mundo, tenho pensado recorrentemente nas várias lições que dela podemos tirar, e tem sido muito elucidativo assistir ao quase desaparecimento das zonas cinzentas: quem é forte, valente e corajoso, continua na linha da frente, e quem é medroso, inseguro ou cobarde, escuda-se atrás de qualquer coisa. Ora isto tanto se aplica às relações familiares, como às laborais e sociais. Há famílias que estão mais unidas que nunca, antigas amizades foram que recuperadas, enquanto em outros lares e ambientes só não foram consumados mais homicídios por falta de planeamento. Segundo o jornal Público, estatísticas apuradas pela Polícia Judiciária dão conta de um acréscimo de 60% de tentativas de homicídio desde o ano passado. Embora em 2019, em período análogo, tenham ocorrido 30 tentativas e neste ano 48, o número de homicídios consumados subiu de 15 para 18. Isto quer dizer que o confinamento pôs muitas pessoas a ferver em pouca água, e não é caso para menos, embora nem sempre o resultado tenha dado em tragédia.
As crises profundas – e não me lembro de viver nenhuma deste calibre desde o Verão Quente em 1975 – assustam e amedrontam, sobretudo aqueles que não conseguem ver para lá da rebentação. Mas também há quem se escude em terceiros para não se mexer. Uma das frases que os gestores e diretores mais têm escutado nas empresas é: A minha mulher não deixa. Ora, um casamento é como uma melancia, só se vê como é depois de se abrir, e no fundo só quem vive debaixo do teto com outro é que sabe como ele é. Portanto, estou tão inclinada para que o argumento tenha fundamento como para o caso de ser usado como desculpa.
O lar é, por princípio, o território no qual a mulher de uma forma mais direta ou mais velada reina, embora existam ainda muitos resquícios da moral machista do Estado Novo que ditava o homem como rei e senhor, chefe absoluto da família, e esses disparates todos que nos tentaram amarrar ao papel submisso da dona de casa dos anos 50 que devia proporcionar ao excelso esposo cama, mesa e roupa lavada, coibindo-se ainda de o ‘maçar’ quando ele chegava a casa, cansado do trabalho. Tudo isto ainda existe, tudo isto é triste e tudo isto é fado, a violência doméstica disparou de tal forma que as linhas de atendimento já evoluíram para as sms, de modo a que queixas e denúncias possam ser comunicadas de forma mais discreta. Isto não está fácil para ninguém, e quem tem bom coração e bom feitio leva a crise de uma maneira, quem tem mau fundo e maus modos, leva de outra. No entanto, e voltando à vaca fria, considero de péssimo gosto e revelador de alguma ausência de caráter o funcionário que não comparece ao local de trabalho, salvaguardadas as devidas precauções, com o argumento acima exposto.
Bem-vindos ao país onde os homens fingem que mandam. O tuga, que adora ter cinco anos e brincar no recreio antes de voltar para a Sala dos Golfinhos, veste o bibe, faz beicinho ao chefe e confessa-se sem pudor refém da vontade da esposa, companheira, ou lá o que que lhe quiserem chamar.
Isto até podia ter alguma graça se não fosse revelador do comportamento típico de muitos portugueses, que têm por hábito atirar para cima da mulher o óbice das decisões mais difíceis, delicadas, ou das que requerem algum confronto, nomeadamente com as chefias. E o mesmo princípio também se aplica em relação às amantes. Sabes, querida, eu queria mesmo sair de casa, mas a minha mulher não deixa. Ou então, numa versão ainda mais infantil e por isso mesmo mais rebuscada, eu fujo de ti, mas tu nunca deixas, porque a culpa nunca é dele, é sempre da mulher que está desempregada, da mãe que está acamada, da sogra que é uma víbora, da irmã que é castradora, da prima que lhe pregava amonas, ou da colega de turma no ciclo preparatório que o trocou pelo rapaz da turma B, tudo mulheres dotadas de poderes terríficos que o maltrataram, tiranizaram, negligenciaram e ignoraram, a ponto de lhe condicionarem para sempre a liberdade de escolha. A culpa nunca é dele, porque quando temos cinco anos de mentalidade e continuamos de bibe na Sala dos Golfinhos, mesmo depois de sermos adultos, pais de família e com carreiras sólidas, a culpa nunca é nossa, é sempre de alguém.
Prático, não é? Sim, mas também indiciador inequívoco de um elevado e requintado grau de sonsice, que não é mais do que falta de tomates. Vendo as coisas enquanto mulher, era o que me faltava, perante um compromisso profissional, alegar que não podia fazer isto ou aquilo porque o meu marido não me deixava. Antes a morte do que tal sorte.