O problema de não ter Instagram é que não temos onde pôr frases inspiradoras que nos ocorrem. Tenho estado a trabalhar nesta: “Castelos no meu caminho? Escavaco-os todos e espalho as pedras por vários sítios, tendo o cuidado de guardar duas ou três para que ninguém consiga reconstruir o castelo, uma vez que lhe faltam peças fundamentais.” Creio que poderia influenciar pessoas e proporcionar-lhes uma vida melhor. Também não tenho onde desabafar sobre coisas do quotidiano, tais como: considero muito perturbadora a pergunta que a Netflix me faz constantemente: “continuar a ver como Ricardo?” Como assim, continuar a ver como Ricardo? Que outra alternativa tenho eu? Se a Netflix providenciasse um modo de eu assistir sem ser como Ricardo, imagino que o serviço fosse bem mais caro. Por outro lado, bastava ter uma série. Já vi o Breaking Bad como Ricardo, vou agora assistir como Dalai Lama. E, depois, como Mozart. Nunca me tinha ocorrido que duas pessoas que vêem a mesma série, na verdade assistem a séries diferentes. Mas, na impossibilidade de oferecer este serviço aos espectadores, para que serve aquela pergunta? Talvez ela fosse útil para Fernando Pessoa, se ele tivesse Netflix. Continuar a ver como Fernando? Ou como Álvaro? Ou como Alberto? Ou como Ricardo? Mas, dirigida a utilizadores que não têm heterónimos, que sentido faz a pergunta? Nenhum. Limita-se a instalar no espectador esse desejo absurdo de experimentar assistir a programas na pele de outra pessoa. A menos que eu seja a única pessoa no mundo a quem esta pergunta inquieta. Pode acontecer. E é mais uma razão para eu querer ver Netflix como outra pessoa. Assistir como Ricardo cansa-me. E cansa as pessoas que me rodeiam, suspeito. Elas esforçam-se por esconder que isso é assim, mas vão deixando pequenas pistas, como quando dizem: “É insuportável ver Netflix contigo.” Essa costuma ser a reacção geral quando eu, assistindo como Ricardo, faço perguntas tais como: porque é que o criminoso gastou tanto dinheiro num relógio bem grande, para mostrar quanto tempo falta para a bomba rebentar? E porque é que a construiu com fios de várias cores, para que a polícia possa escolher qual deles cortar e assim desactivar o engenho? Porque não construir uma bomba só com fios pretos? Uma coisa sóbria e profissional, que ponha o herói verdadeiramente à prova, e o impeça de cortar o fio cuja cor lhe lembra a camisola que a mulher, ou a filha, ou a mãe tinha vestida quando ele saiu de casa e que evidentemente é o que evita a explosão? E acontece ainda que, quando aparece a pergunta “continuar a ver como Ricardo?”, por vezes eu faço experiências com a pontuação, e leio: “continuar a ver. Como Ricardo?”, de modo a fazer parecer que o que a Netflix está de facto a anunciar é que vamos continuar a ver, ao mesmo tempo que pede autorização para me comer. Não há dúvida de que é um fardo pesado, ver como eu.
Continuar a ver como eu?
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Castelos no meu caminho? Escavaco-os todos e espalho as pedras por vários sítios, tendo o cuidado de guardar duas ou três para que ninguém consiga reconstruir o castelo, uma vez que lhe faltam peças fundamentais