Há coisas que desaparecem sem deixar rasto. Uma das luvas do par, as moedas castanhas, os guarda-chuvas, os talões do parque de estacionamento, as ideias. Algures existirá um alçapão onde todas estas coisas órfãs de dono se acabam por amontoar todas juntas num bizarro armazém, uma espécie de bazar encantado onde as crianças acabarão por encontrar o chapéu do cowboy de plástico que um dia simplesmente se evaporou, onde as meias hão de por fim encontrar o seu par, quem sabe se no fim dos tempos, quando o Arcanjo Miguel descer dos céus para resgatar as derradeiras almas sob o céu. Até lá, há que aceitar que é assim: as coisas desaparecem, fogem por algum buraquinho de um qualquer portal mágico com destino a um universo paralelo que não nos é dado conhecer. De todas estas coisas que desaparecem, que na sua generalidade não passam de tralha dispensável e substituível, uma pequena parte constitui uma enorme tragédia, uma irreparável perda para a humanidade: as ideias. As ideias que se perdem, que escorrem pelo ralo irreversível que esse tal buraco negro traga e não devolve. Talvez num momento mais feliz, mais fértil e cívico da nossa caminhada humana, num tempo mais claro, mais cumprido e justo, seja possível que as ideias não se frustrem ainda em verde, ainda no ramo. Vivemos num momento nada propício a que as ideias amadureçam em coisa concreta. Porque as ideias precisam, quase sempre, que a alma que as pariu venha munida de uma natureza empreendedora, engenhosa, “desenrascada”, com facilidade em arranjar empréstimos e investidores, em conhecer este ou aquele que ajude a viabilizar leis, que é como dizer, uma natureza contrária àquela natureza contemplativa, alheada, pachorrenta e ausente de alguém que tem ideias porque fica a olhar da varanda. Casar estas duas forças é praticamente impossível. As pessoas das ideias não sabem sequer como tirar o talão do estacionamento do edifício onde se pode registar uma patente, quanto mais criar uma empresa. E as pessoas empreendedoras estão demasiado ocupadas a ler artigos do código fiscal ou a abrir CAE para se deixarem estar quietas a fermentar o lado criativo do cérebro. Além de tudo mais, são pessoas que não se entendem nem sequer se apreciam muito. Não se cruzam. Num futuro mais pleno, será uma prioridade para a humanidade não deixar que as ideias vazem desta forma. Será urgente fazer o encontro entre a vontade de que algo exista e a vontade de fazer com que algo exista. Até lá, andaremos nisto: a criatividade vai permanecendo cativa no plano da imaginação.
O alçapão das ideias
As pessoas das ideias não sabem sequer como tirar o talão do estacionamento do edifício onde se pode registar uma patente, quanto mais criar uma empresa