Eu nunca fui maratonista, mas diz-se que numa corrida de resistência, ultrapassada a fase em que a desistência parece inevitável e bate o desespero de quem jura não aguentar nem mais um minuto, vem a parte em que o corpo se move mecanicamente, sem esforço, numa espécie de transe. É precisamente essa a fase do confinamento em que me encontro. Se em janeiro, perante a perspetiva de dois meses de prisão domiciliária, fui acometida pela angústia de não saber como suportar outra temporada de isolamento, neste momento já me parece a normalidade. A memória de outra rotina parece cada vez mais distante e os dias sucedem-se sem expectativas de mudança, numa espécie de torpor confortável. Aquele tipo de sonolência de quem dormiu demais.
Não que esteja deprimida ou desanimada. Diria que estou conformada. Sinto que a permanente expectativa e antecipação da liberdade piora a claustrofobia, no sentido em que traz a falsa esperança de uma soltura que, dado o contexto, nunca será total. É uma liberdade condicional, com data incerta, e cuja perspetiva desassossega pela insuficiência. Acho que o meu subconsciente escolheu o hábito. A maravilha da rotina é essa de normalizar e domesticar quase tudo. Diria que é a grande chave para o nosso infinito poder de adaptação. E, neste momento, é mais confortável saber que posso contar com ela, ancorando-me nos pequenos rituais quotidianos, do que arfar por horizonte num momento histórico marcado pela total falta de linearidade.
Nesta família de três, já vamos para o quarto aniversário em confinamento. Em dois anos de vida, o meu bebé passou metade em pandemia, vivendo num círculo muito restrito de contactos sociais. Com a sorte de ter os pais muito presentes, mas sem a oportunidade de ir de colo em colo numa festa, ou de brincar com os filhos dos nossos amigos, ou mesmo de ir ao parque infantil da praça (porque está fechado há meses). O que me descansa é que, tirando a parte do parque infantil, que é demasiado difícil de explicar e que se mantém como grande objeto de desejo, o resto é a normalidade dele e o quintal e os avós fazem as vezes do mundo e das multidões.
Já os amigos e colegas que trabalham no setor da cultura preocupam-me seriamente. Não ter trabalho, nem perspetivas é duríssimo, e para os que estão sozinhos ou sem crianças em casa, é ainda mais difícil ficar à tona. As crianças, além de darem muito que fazer, deixando pouco vagar para pensar na realidade, dão muito que sorrir e enternecer, o que ajuda a manter mais o foco nas pequenas alegrias e menos nas grandes desgraças.
Os apoios são escassos e o dinheiro anunciado é, mais uma vez, para novos projetos, como se a esmola viesse sempre em troca do truque. Ora, quando a pandemia nos tirou a oportunidade de trabalhar e os nossos projetos foram interrompidos, ficámos cheios de discos por lançar e apresentar, peças e espetáculos por estrear, exposições por inaugurar, livros por vender. Financiamento de novos projetos culturais não é compensação ou ajuda em hora de aperto. Não podem exigir novidade sem nos ressarcirem pelo ano (não) passado, pelo presente suspenso e pelo futuro não concretizado.
Esta semana, a caminho do supermercado, passei à porta de um centro de vacinação e, naquele segundo em que o carro cruzou o edifício, tive o vislumbre de uma velha senhora a entrar, curvada, apoiada pelo braço. Pareceu-me ver o futuro naqueles cabelos brancos. Confortou-me viver numa sociedade em que se protegem os mais velhos primeiro e senti estar perante a luz ao fundo do túnel. Mas depois, lendo as notícias e vendo a forma como as grandes farmacêuticas andam a driblar a UE, gerindo a conta-gotas a entrega das vacinas que cofinanciámos e que já estão pagas, senti que é prudente frear as expectativas e que o melhor é manter o foco nas pequenas tarefas rotineiras e alimentar o apaziguador transe do dia a dia. (Podem até achar que é conformismo, e talvez seja, mas para mim, nos dias que correm, é estratégia de sobrevivência).
(Crónica publicada na VISÃO 1461 de 4 de março)