Leandro Roque de Oliveira (Emicida) é um dos maiores pensadores brasileiros da atualidade e um dos grandes poetas da língua portuguesa.
Nascido numa família negra da periferia de São Paulo nos anos oitenta, cedo ficou órfão de pai e corresponsável pelos três irmãos mais novos. Dona Jacira trabalhou muito para alimentar as crianças, sozinha, num pequeno barraco de uma só divisão, em que dormiam os cinco de estômago a dar horas, evitando as goteiras. É muito pouco provável fintar as estatísticas. Sobretudo num país continental, profundamente desigual e com uma estrutura social escravocrata como o Brasil. É preciso começar cedo, trabalhar muito e ser mais do que talentoso.
Leandro gostava de rimas e era rápido no gatilho da improvisação, tinha espírito competitivo e amor pela cultura Hip Hop. Foi por isso que começou a participar em batalhas de rap de improviso, que ganhava consecutivamente, até conquistar o seu epíteto e firmar uma reputação sólida na cena de São Paulo.
Daí até à primeira mixtape caseira foi um pulo. Os CD, gravados em casa, um a um, e embalados artesanalmente com a ajuda do irmão Evandro, foram um sucesso de venda informal na periferia, ao ponto de fazerem despontar o auspício de uma carreira musical e de Leandro convidar o irmão a deixar o seu trabalho no McDonald’s para ser seu agente.
Fast forward para o dia de hoje e os irmãos gerem uma empresa com quase vinte funcionários e que é um exemplo de empreendedorismo jovem, de empreendedorismo negro e de empreendedorismo musical, num mercado dominado por grandes multinacionais e em que o rap não tinha grandes números até há poucos anos.
A Laboratório Fantasma, além de ser uma editora independente, é uma agência de artistas e uma promotora de concertos, é uma produtora de conteúdos audiovisuais e uma marca de roupa. Mas mais do que isso, é um “aquilombamento”. É um uma prova de independência e um marco na história da música brasileira, feito por e para a comunidade negra e para todos os que lutam contra o racismo no país. Depois de vários discos, de várias colaborações, de inúmeras tours internacionais e multidões de fãs, Emicida mostrou que fintar as probabilidades no Brasil é difícil, mas quando acontece, o prémio é alto e, no caso dele, fica para a História.
Conhecemo-nos num festival em Portugal e ficámos amigos rapidamente. Participei em alguns dos seus concertos e depois colaborámos no disco luso-brasileiro Língua Franca que saiu por iniciativa da sua label. Passado duas semanas de intenso convívio, a compor em conjunto na alcatifa do estúdio, não só passei a admirar profundamente o seu instinto criativo, como passou a ser uma das pessoas no mundo com quem gosto mais de conversar.
É sempre refletido, filosofa, é culto e tem um calão de estimação em que as conjugações não combinam com os sujeitos, num orgulhoso sotaque paulista da quebrada. Mistura referências de rato de biblioteca com os mais estúpidos vídeos do YouTube, banda desenhada com provérbios antigos, filosofia oriental com frases de rappers underground dos anos noventa e tanto se comporta como uma criança, amuando porque não há arroz-doce, como fala com a solenidade de um ancião de tribo. A sua gargalhada é de velho e de criança e o seu espírito sonhador, sendo de um otimismo quase infantil, é clarividente como o mais experiente dos homens.
A sua ambição é coletiva. O seu rasgo é inspirador. E a sua força criadora tem sido alavanca para muitos debates e muitas conquistas de terreno mediático e político. Ele diz que, sendo músico, tem de ter fé. Pois se vive de algo que não se vê mas sente-se ao ponto de transformar a vida individual e coletiva, seria estúpido não considerar que Deus tem esse exato poder. A verdade é que a fé e a música têm sido o combustível certo para o seu caminho, e hoje dedico-lhe esta página não só porque acaba de ganhar um Grammy Latino (!), como está prestes a estrear um documentário na Netflix (!).
Leandro, meu amigo, que orgulho tenho em ti e que bênção é ser tua contemporânea, vou repetir o que dizes sempre: Seu único defeito é morar longe pra cacete!
(Crónica publicada na VISÃO 1447 de 26 de novembro)