Quem nunca fez o clássico exercício de imaginar o que faria com o prémio do Euromilhões mesmo sem ter jogado? Eu, que quase nunca jogo, já me fartei de fazer planos para a minha fortuna imaginária. As casas incríveis em sítios idílicos, como o Porto ou Lisboa, onde nunca conseguirei comprar uma casa com quintal a um preço viável. A ambição da autossuficiência ecológica numa casa de campo, com todos os gadgets de produção de energia, tratamento de esgotos, produção agrícola sustentável, etc. As viagens às Caraíbas e os longos meses de praia (não sei se já vos disse, mas acalento o desejo de descobrir quanto tempo de praia seria preciso para me fartar de estar de férias e, isso, sendo no mínimo uns meses, só podendo). E a música que faria, mesmo sem precisar de trabalhar. Discos e discos…
Ora bem, desde que tive um bebé, o exercício mudou. Agora gosto de imaginar o que faria se tivesse tempo livre, sendo que a ideia de ter tempo livre é tão distante e improvável como ganhar o Euromilhões.
Ter tempo para o básico é, por si só, bastante difícil e, entre todo o tempo dedicado à criança, às tarefas domésticas e às tentativas de voltar a ter uma vida própria (como trabalhar e fazer exercício), sobram menos de oito horas para dormir (e ainda por cima é aos retalhos).
No meio disto tudo, decidi fechar um disco. Um disco que já comecei antes da gravidez, mas que se arrasta como uma gestação de elefante. Num parto que se dificulta pelas circunstâncias. E se há muito quem me diga para ter paciência e adiar mais um pouco, há também a minha enorme vontade de fechar a etapa, porque, sendo uma sobrecarga, é também uma forma de me reencontrar comigo, como ser independente e com livre-arbítrio, determinado em fazer da sua visão artística um meio de sustento tão válido como outro qualquer. Antes cansada que frustrada, escolho eu, que não nasci para ser dona de casa a tempo inteiro (sem nenhum demérito, muito pelo contrário, não tenho é estofo para isso).
Neste contexto, dou por mim a sonhar alto com os serões que serão (quando tiver tempo, um dia), com as escapadas de fim de semana, que me escapam por entre as mãos ocupadas a trocar fraldas, com a semana de férias que terei quando puder tirar férias da maternidade. E mesmo sabendo que, quando isso finalmente acontecer, passarei o tempo todo tensa de saudades e a pedir que me enviem fotos do bebé, nos meus sonhos impossíveis é tudo perfeito.
Uma sexta-feira à noite com sushi e cinema (já que desde que estou em prisão domiciliária parece que só se estreiam filmes bons). Sem dispensar um passeio pelos corredores do shopping para ver as montras (com a calma de quem vai à sessão da meia-noite, porque pode dormir até tarde no dia seguinte) e, obviamente, um balde de pipocas tamanho-javardo.
Um fim de semana inteiro no spa das termas, com entrada na sexta–feira ao fim da tarde e saída na segunda de manhã, novinha em folha. Aquela cama de hotel bem grande, com um sobrecolchão modelo-nuvem, para dormir o sono dos justos. Doze horas, no mínimo. A comida do restaurante das termas, da mais santinha à mais regional, porque afinal tanto sou moça para peixe cozido como para uma de rojões à moda do Minho. A maratona de Netflix no intervalo dos banhos.
Mas, sobretudo, ficar de molho durante horas, naquela água quente com cheiro a enxofre, até ficar com os dedos encarquilhados e todos os átomos do meu corpo amolecidos. Sem esquecer as massagens a que tenho direito, pelas horas que passo a embalar mais de oito quilos em braços.
Uma semana em São Miguel. Uma road trip na Escócia. Voltar a Fernando de Noronha. Ir a Cuba, antes que vire Miami. Ir a Miami, antes que vire fundo do mar. Enfim, os planos são infinitos. E, sendo certo que não tenho tempo nem para uma pedicure, para sonhar acordada, só é preciso não dormir (o que facilita muito por aqui).
(Crónica publicada na VISÃO 1391 de 31 de outubro)