Diz o velho provérbio fenício: nada se compara à sensação de fugir da cidade, fintar o calor escaldante nas curvas da serra, descer à praia pelas escarpas, duas horas de escalada, para enfim pisar as areias do paraíso e ser presenteado com o melhor do kizomba numa coluna Bluetooth.
Esta semana, a Autoridade Marítima Nacional informou que as colunas de som portáteis estão interditas na praia. A utilização de equipamentos sonoros no areal está sujeita a coima até 4000€ para pessoas singulares e 36000€ para pessoas coletivas, conforme a Lei nº50/2006, de 29 de agosto. Vários jornais o noticiaram: nas praias vigiadas, quem se sentir incomodado tem o direito de pedir aos nadadores-salvadores que contactem o comando local da Polícia Marítima. Trata-se disso mesmo: de um direito.
O debate sobre as colunas portáteis configura um debate clássico sobre liberdades e os seus limites. Como no tema da liberdade de expressão, tão em voga, acabamos muitas vezes a tê-lo num ping-pong entre quem acredita em liberdades absolutas e quem vê na interdição todas as chaves do Totoloto. Há quem julgue ter o direito inalienável a obrigar toda a gente a tolerar o seu ruído e quem queira proibir a reprodução de música em locais públicos. Neste tema – que é sério e importante -, importa conseguirmos ver além da encruzilhada.
Como amante da liberdade e da música, vejo na possibilidade tecnológica de reproduzir som ao ar livre um milagre. Pertenço à primeira geração que cresceu com um universo de música no bolso e já passei noites fantásticas com amigos a ouvir música na praia, em colunas portáteis. Vejo na generalização do acesso aos telemóveis, aos auriculares, etc., uma rutura com um sistema elitista em que a cultura e a fruição musical eram direitos reservados a poucos. Adoro saber que qualquer família pode, a baixo custo, levar música para um piquenique. Como produtor de espetáculos, já me deparei com cenários em que montar um concerto num jardim, ou numa praça, não é unanimemente bem-vindo. É normal. Quero viver em cidades alegres, inspiradas e inspiradoras, e encontro nas colunas portáteis uma ferramenta essencial para performers de rua apresentarem o seu trabalho. Revolta-me a ideia de querer silenciar tudo isto.
Ao mesmo tempo, encontro no ato de pôr música aos altos berros em público um gesto de profundo egocentrismo. Celebro a democratização do acesso à tecnologia, mas entristece-me ver como pode tanta gente mostrar-se indiferente ao impacto do seu ruído na paz de uma praia, de um jardim, de um autocarro. Obrigar os outros a ouvir o que só nós queremos ouvir é uma agressão. Sou, portanto, daqueles que se levantam quando há alguém no comboio a incomodar toda a gente. Faço questão de abordar a pessoa numa atitude pedagógica, explicando-lhe que ninguém está a adorar, que mais ninguém parece interessado naquela pérola do reggeaton, que o ano de 1919 viu nascer os auriculares, que naquela carruagem estão mães cansadas a regressar a casa depois de um dia de trabalho. A invocação do respeito à figura materna costuma resultar. Vejo nas colunas portáteis o altifalante do individualismo ácido, da atomização das pessoas, cada vez mais viradas para dentro. Defendo, porque a comunidade tem direito à paz, que o uso de colunas privadas em espaços públicos carece de regulamentação urgente.
Por muito que seja boa ideia alertar para a existente lei do ruído nas praias, de pouco nos servirá chamar a Polícia Marítima. “Boa tarde, senhor agente, cada um destes 800 prevaricadores está a incomodar-me com a sua música favorita”. Não funciona. Cada vez mais pessoas têm colunas, cada vez mais potentes. Assim será. A sociedade moderna não está, infelizmente, a caminhar no sentido de se tornar menos individualista. Este debate é sério – e tem de ser levado a sério, pois está na génese do modelo de sociedade que queremos. Queremos uma sociedade de papagaios narcisistas? Eis um “dilema” para trabalhar nas escolas, em Formação Cívica, na comunicação social, na rua, na Assembleia. Urge debater e legislar sobre o assunto.
Sabendo que, no entanto, há falta de tempo para o fazer, por estarmos demasiado ocupados a responder às magnas questões da atualidade – “o sr. Ministro abriu, ou não abriu, o SMS?”; “afinal, quem estava em cc no email?; e outras do género -, ofereço uma ideia para a solução intermédia: concentrar, em duzentos hectares de areal, todas as pessoas interessadas em competir no verão de 2023 para ver quem toca a sua música mais alto. Quem ganhar, é eleito chefe da comunidade e ganha, no final do verão, uma coluna Bluetooth gigantesca.
Já quem, como eu, pertencer ao grupo aberrante daqueles que vão para a praia na esperança de ouvir o mar, fica com o areal que sobrar. Ou então, avisa o amigo nadador-salvador, que de sua vez avisa o amigo agente da Polícia Marítima. Assim verá o seu problema resolvido no espaço de um grão de areia.
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