Entro sempre às oito e quinze. Chego diariamente à escola, onde leciono há três décadas e meia, por volta das sete e quarenta e cinco minutos e ali fico parada, dentro do carro, a observar uma jovem adolescente que aguarda pela abertura do portão, sempre só, afastada dos grupos de outros alunos que ali se encontram.
Esta aluna tem uma particularidade: usa o hijab (código de vestuário do islão) de cor preta, cumprindo à risca os ditames da sua religião (segundo o islamismo, não é permitido que os fiéis mostrem em público as partes íntimas, para os homens, a região entre o umbigo e o joelho e, para as mulheres, o corpo inteiro, exceto o rosto e as mãos). Acontece que esta miúda, para além de estar vestida dos pés à cabeça por esta pesada e negra vestimenta para a sua tenra idade, tem sempre o rosto coberto por uma máscara também preta que lhe deixa apenas visível os seus olhos profundamente belos e escuros.
Enquanto professores, julgo não ser possível limitarmo-nos aos conteúdos programáticos das nossas diferentes áreas de saber. Ser professor é também contribuir para a formação dos jovens, defender diariamente os direitos humanos, a justiça, o respeito pelo “outro”. No seu dia-a-dia profissional, um professor tem constantes oportunidades para mostrar aos seus alunos alguns dos aspetos menos positivos da sociedade em que vivemos, as suas discrepâncias e a urgente necessidade de tolerância necessária neste mundo. Porém, é aqui que entra a complexidade desta situação aqui apresentada. A escola onde leciono situa-se numa zona de território educativo de intervenção prioritária, exigindo permanentemente que as regras do seu Regulamento Interno sejam cumpridas, evitando assim que tenhamos dentro da sala alunos de capuz, de boné, de auscultadores, de calças caídas (e com a roupa interior à mostra), etc… É esta mesma escola aceita que esta aluna percorra livremente os corredores de cabeça e corpo cobertos e de rosto tapado. Curiosamente, destaque-se a plena aceitação deste fardamento pouco usual por parte dos seus colegas, alegando, quando questionados, não verem ali qualquer problema:
– É a religião dela, stora.
E é mesmo.
Contactado o encarregado de educação sobre a inadequação do uso do rosto coberto no espaço escolar, este, alegando que a aluna tem de usar máscara por motivos de saúde (sofre de alergias), deixa pouco espaço para a sua proibição (caso fosse essa a solução encontrada). Ou seja, a aluna deambula pela escola de rosto coberto, utilizando a máscara supostamente antialérgica para substituir o nicabe, o véu que cobre o rosto e só revela os olhos, usado por algumas mulheres muçulmanas.
Ensinar e promover a tolerância implicarão permitir a utilização do véu islâmico na escola pública, que se pretende laica, e onde, o regulamento da instituição desautoriza qualquer tipo de chapéu, boné ou lenço? Consciente da importante reflexão que esta situação exige, não basta murmurarmos o nosso desagrado pelos corredores. Importará levar esta discussão à praça pública e obter um consenso que permita à escola estatal um lugar pioneiro na linha da frente do progresso civilizacional. Ora, não havendo indicações da tutela, as escolas adaptam-se, como podem, às diferenças culturais do cada vez maior número de alunos que as frequentam.
De acordo com números do Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), desde o ano letivo de 2020/2021, o número de alunos migrantes nas escolas públicas portuguesas aumentou 71%., existindo escolas com alunos de mais de três dezenas de nacionalidades. Se, numa destas aulas, um aluno de capuz me disser que não o retira, como posso obrigá-lo? Por outro lado, vou sempre para casa a pensar no que farei no dia em que a minha sala de aula tiver, em vez de uma aluna de hijab, várias alunas de hijab. Por outro lado, o que fazer quando esta aluna ou outros da mesma religião decidirem ser seu dever cumprir o salat (horário de oração) e, em plena aula, quiserem ajoelhar-se ou apenas sair da sala para rezar (aquando do terceiro momento de oração que ocorre por volta das dezasseis horas e em pleno horário de aula), como já aconteceu?
O acolhimento dos alunos migrantes na escola pública levanta a todos nós, professores, muitos problemas e dificuldades e, na maior parte dos casos, não estamos preparados para o fazer eficazmente. No meu caso, continuo muito dividida entre o receio de ver a escola repleta de alunas de hijab e esta enorme consciência de que o mundo precisa cada vez mais de tolerância.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
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