A neutralidade da tecnologia tem sido problemática filosófica que se tem revelado uma utopia. A realidade tem demonstrado que depende de como é utilizada, por quem, do seu potencial de transformação e da interação com outras tecnologias. Tudo isto a propósito das notícias veiculadas amplamente nos meios de comunicação social de que um recluso, no decurso de uma evasão de um estabelecimento prisional, poderia estar a usar um auricular para comunicar com aqueles que materialmente o auxiliavam do exterior. Se assim for, poder-se-á cogitar: com quem comunicou, em que termos, durante quanto tempo (e outras questões conexas, que deixarei ao leitor cogitar).
Em termos jurídicos, estamos no âmbito das famosas problemáticas dos metadados, tendo Portugal publicado no dia 5 de fevereiro de 2024 a Lei nº 18/2024. O art.º 2, nº 1, al. g) da referida Lei define os crimes graves e pedia o favor de ter a paciência de ler o cardápio: crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou de títulos equiparados a moeda, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
Se atendêssemos só ao crime de evasão, previsto e punido pelo art.º 352º do nosso Código Penal, verificaríamos que se encontra prevista uma pena de prisão até dois anos. Ou seja, se formos só por este crime, manifestamente o legislador “ad quo” impossibilita a utilização de meios disponíveis de investigação a favor de evadidos que a Polícia Judiciária descreveu como sendo extremamente violentos, com risco de cometimento de novos crimes.
Por outro lado, importa sublinhar que o crime de evasão é um crime permanente, ou seja, enquanto estiverem em fuga, o referido crime prolonga-se, não decorrendo qualquer prazo prescricional. Como é fácil de concluir, se só daqui a alguns anos se lograr capturar alguém, nessa data o arguido terá de ser criminalmente responsabilizado. Se existisse um prazo máximo obrigatório para deduzir acusação após seu registo (v.g. 8 meses, contando de data de fuga), tal conduziria a uma aberração jurídica e só aumentaria o sentimento de insegurança bem como de impunidade.
Ao legislador cabe analisar a realidade, decidir e legislar. O que for decidido, de preferência com estabilidade legislativa, tem impacto em todos nós e nela todos viveremos.
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