Existe e sempre existiu um grau de imprevisibilidade na individualidade do comportamento humano. Este foi progressivamente temperado com um conjunto de regras, inicialmente não escritas, mas que com o tempo e nas diversas sociedades se foi solidificando na complexidades de regras gerais e abstratas das hodiernas sociedades.
É possível estabelecer uma associação entre o desenvolvimento das diversas sociedades ao longo do tempo e os normativos legais que produziam, bem como a forma como os implementavam.
O Código de Hamurabi, na Babilónia antiga, continha leis específicas sobre a posse e o tratamento de outros humanos que tinham a categoria de escravos. E o direito romano distinguia claramente entre cidadãos e escravos, sendo que os primeiros tinham um controle quase absoluto sobre a vida e o corpo dos últimos. Em Portugal, as “Ordenações do Reino” reconheciam a escravatura e regulavam o tratamento dos escravos.
A história do direito demonstra a existência de múltiplas normas ao longo do tempo que tinham todas as características menos as de promoção de uma sociedade mais justa e equitativa. No caso da mulher, é confrangedor como até há pouco tempo a sociedade portuguesa legislou um conjunto de normas que diminuíam as mulheres justificando com “a diferença resultante da sua natureza e do bem estar da família” (vide art. 5º da Constituição Portuguesa de 1933).
As normas que existiam parecem atualmente de um filme distópico. Para os mais novos como eu, permitam-se (re)ler alguns normativos:
– a mulher enfermeira estava proibida de casar se quisesse exercer a sua profissão nos hospitais civis;
– quem fosse professora primária tinha de pedir autorização do Ministério da Educação Nacional para casar. A autorização tinha de ser publicada no Diário do Governo e estava sujeita ao seguinte requisito patrimonial – que o homem tivesse um rendimento mensal superior ao da mulher;
– as telefonistas da Emissora Nacional de Radiodifusão, dos Correios bem como as hospedeiras da TAP, para casar, igualmente necessitavam de uma autorização;
– era proibido dar beijos em público, mesmo que fosse um casal casado;
– o biquini era algo interdito, muito próximo de um artefacto pornográfico;
– a minissaia era uma peça proibida e quem a usasse não podia entrar em espaços como liceus;
– uma mulher não podia andar sozinha à noite (e quem andava arriscava-se a ser considerada um objeto sexual);
– se alguém quisesse usar isqueiros, tinha de ter uma licença especial;
– era proibido às mulheres o desempenho de profissões consideradas nobres pela sociedade portuguesa da época, como o acesso à carreira diplomática, militar, policial ou da magistratura judicial.
Este mito marialvista da mulher obrigatoriamente confinada ao lar, num país em que a violência doméstica era um conceito desconhecido, criou dor, traumas, preconceitos e conflitos que perduram até aos presentes dias. Não obstante, todas estas normas foram aprovadas por ampla maioria, sob aplausos dos bons cidadãos. Com evidentes efeitos no agravar da desigualdade, do empobrecimento e da exclusão social.
E por isso importa sempre sublinhar que apenas quando todos os membros da sociedade têm direitos e acessos iguais, numa perspetiva de justiça equitativa, ao sistema educacional e de saúde, a oportunidades e participação na vida pública, com empoderamento económico dos seus membros e coesão social , é que existe uma melhoria geral do desenvolvimento humano.
Se se criarem normas que servem só alguns, estaremos a construir sociedades mais injustas. Por isso mesmo reforçar o processo de transparência legislativo ao nível da forma como as normas são criadas e combater fenómenos de corrupção a ele associados é essencial, como pressuposto para que todas as pessoas possam alcançar o seu pleno potencial, numa sociedade onde o desenvolvimento humano floresça de forma plena e educativa.
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