Ao longo dos tempos fomos, e continuamos a ser, impactados com a presença de personagens como Sherlok Holmes, de Conan Doyle, Hercule Poirot e Jane Marple, de Agatha Christie, cuja inteligência, argúcia e subtileza nos fascinam. Mas também com o confuso, distraído e atrapalhado Inspetor Clouseau que, para além do sucesso das investigações, tem o dom de nos fazer rir.
Esta é a espetacularidade do pequeno ecrã e o glamour do cinema.
Hollywood soube explorar de forma incomensurável o potencial da investigação criminal, na sua maioria das vezes através de séries com episódios de curta duração, com uma lógica de adesão capaz de conquistar inúmeros adeptos de todas as faixas etárias.
Disso são exemplo claro as diversas séries CSI. Quem não se recorda da personagem Horatio Caine, interpretado por David Caruso, a colocar de forma elegante e aprimorada os seus óculos de sol, sinónimo de mais um caso resolvido?!
Séries como o CSI fornecem uma imagem distorcida e fantasiosa da realidade da investigação criminal, onde os resultados são imediatos e infalíveis, dispondo de recursos infindáveis (alguns inexistentes) necessários para a demonstração da verdade, sempre com elevada espetacularidade.
No pequeno ecrã um episódio tem em média 40 minutos e nesse lapso temporal, a equipa de produção tem de criar um evento criminoso, desenvolver uma investigação e apresentar o resultado final, sempre com estrondoso sucesso.
A investigação real é completamente diferente!
O desencontro entre a ficção e a realidade promove uma perceção da investigação criminal e do sistema de Justiça Penal completamente irreal, que potencia expetativas relativamente às suas reais possibilidades, objetivos e capacidades.
A realidade da investigação criminal não se compagina com 40 minutos de ficção. E é esta investigação – a real – que corporiza e alimenta o inquérito penal.
Segundo o Código Processo Penal, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
Mas esse conjunto de diligências, essenciais a assegurar as exigências de rigor probatório que um libelo acusatório impõe, demoram mais tempo que qualquer magistrado do Ministério Público gostaria que demorasse.
O inquérito deve terminar por despacho do Ministério Público (arquivando-o, suspendendo o processo provisoriamente ou deduzindo acusação), no prazo máximo de 6 meses (se houver arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação) ou de 8 meses (se os não houver), a contar do momento em que correr contra pessoa determinada ou da data da sua constituição como arguido. Excecionalmente, atendendo ao tipo legal de crime e à excecional complexidade do procedimento, o prazo de inquérito pode ter a duração máxima de 14, 16 ou 18 meses.
Tomando de partida o prazo médio de inquérito – 8 meses – importa fazer um exercício abstrato para perceber a dificuldade em cumprir os prazos impostos por Lei e realizar as tais diligências atinentes à prolação de um despacho final.
Vejamos um evento criminoso muito simples e comum: uma ameaça através da rede social Facebook.
O relógio começa a contar.
Primeiro despacho:
Solicitar à empresa Meta, detentora da rede social Facebook, elementos que permitam identificar o titular do perfil que efetuou o crime de ameaça em investigação.
O Facebook, responde em média ao final de três meses.
O relógio está a contar: 3 meses de prazo de inquérito.
Segundo despacho:
Atendendo à informação fornecida pela Meta, torna-se necessário solicitar ao fornecedor do serviço de email (Google, Microsoft, SAPO, etc.) e às operadoras de rede móvel (Meo, Vodafone e NOS) a identificação do titular do email de recuperação e do número de telemóvel associado ao dito perfil.
Os fornecedores do serviço de email, quando respondem, demoram em média três meses a enviar a informação.
O mesmo acontece com as operadoras de rede móvel.
O relógio está a contar: 6 meses do prazo de inquérito.
Terceiro despacho:
Considerando a informação fornecida pela operadora de rede móvel, que remeteu os códigos de carregamento do telemóvel associado ao perfil do Facebook, tratando-se de um cartão pré-pago sem dados fidedignos, urge solicitar à SIBS a identificação da entidade bancária associada ao carregamento do telemóvel.
A SIBS responde em média em 30 dias.
O relógio está a contar: 7 meses do prazo de inquérito.
Quarto despacho:
Solicitar à entidade bancária a identificação do titular da conta utilizada para carregar o número de telemóvel associado ao perfil de Facebook.
Dependendo da entidade bancária a resposta pode oscilar entre 1 a 3 meses.
Nota: Devido à falta de oficiais de justiça a tramitação do inquérito – cumprimento do despacho anterior e abertura de conclusão para prolação do despacho posterior – tem tempo médio de um mês entre cada ato.
O relógio está a contar: 14 meses do prazo de inquérito.
Agora temos um suspeito identificado. Faltam todas as outras diligências de prova, como inquirições, interrogatórios, análise documental, etc. Todavia, o prazo de 8 meses de inquérito já se encontra há muito precludido.
O Ministério Público e os Órgãos de Policia Criminal em grande parte da sua ação estão dependentes de entidades terceiras para obtenção de elementos probatórios, cujo core business não é responder às necessidades da investigação, mas sim rentabilizar a sua atividade.
Por outro lado, faltam as potencialidades da ciência e tecnologia utilizadas na ficção, que em alguns casos já se tornaram realidade através de ferramentas de Inteligência Artificial, mas que teimam em não chegar ao combate à criminalidade.
A realidade da investigação criminal fica muito aquém da ficção…infelizmente para todos!
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.